A GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA CONTRA O PARAGUAI ANIQUILOU A ÚNICA EXPERIÊNCIA EXITOSA DE
DESENVOLVIMENTO INDEPENDENTE
"O homem viajava ao meu lado, silencioso. Seu perfil, nariz afilado, altos pômulos, recortavase contra a forte luz do meio-dia. Íamos para Assunção, partindo da fronteira sul, num ônibus
para vinte pessoas que, não sei como, transportava 50. Depois de algumas horas, uma parada.
Sentamo-nos num pátio aberto, à sombra de uma árvore de folhas carnosas. Aos nossos olhos,
abria-se o brilho ofuscante da vasta, despovoada, intacta terra vermelha: de horizonte a
horizonte, nada perturba a transparência do ar do Paraguai. Fumamos. Meu companheiro,
camponês de fala guarani, desabafou algumas palavras tristes em castelhano. “Os paraguaios
somos pobres e poucos”, disse-me. Explicou que havia descido até Encarnación à procura de
trabalho, mas nada encontrara. Tinha conseguido apenas juntar uns pesos para a passagem de
volta. Muitos anos antes, quando moço, tinha tentado a sorte em Buenos Aires e no sul do
Brasil. Agora vinha a colheita do algodão e muitos braceros paraguaios pegavam a estrada,
como em todos os anos, rumo às terras argentinas. “Mas eu já tenho 63 anos, meu coração já
não suporta essas andanças enroladas.”
Somam meio milhão os paraguaios que abandonaram definitivamente a pátria, nos
últimos vinte anos. A miséria induz ao êxodo os habitantes do país que, até quase um século
atrás, era o mais avançado da América do Sul. O Paraguai tem agora uma população que
apenas duplica a que tinha então, e como a Bolívia, é um dos dois países sul-americanos mais
pobres e atrasados. Os paraguaios padecem a herança de uma guerra de extermínio que se
integrou à história da América Latina como o seu capítulo mais infame. Chamou-se Guerra da
Tríplice Aliança. Brasil, Argentina e Uruguai encarregaram-se do genocídio. Não deixaram
pedra sobre pedra e tampouco habitantes varões entre os escombros. Embora a Inglaterra não
tenha participado diretamente na horrorosa façanha, foram seus mercadores, seus banqueiros e
seus industriais que resultaram beneficiados com o crime do Paraguai. A invasão foi
financiada, do princípio ao fim, pelo Banco de Londres, pela casa Baring Brothers e pela
banca Rothschild, através de empréstimos a juros leoninos que hipotecaram o destino dos
países vencedores.[1]
Até sua destruição, o Paraguaio se destacava como uma exceção na América Latina: a
única nação que o capital estrangeiro não havia deformado. O longo governo de mão de ferro
do ditador Gaspar Rodríguez de Francia (1814-1840) havia incubado, na matriz do
isolamento, um desenvolvimento econômico autônomo e sustentado. O Estado onipotente,
paternalista, ocupava o lugar de uma burguesia nacional que não existia, na tarefa de organizar
a nação e orientar seus recursos e seu destino. Francia apoiara-se nas massas campesinas para
esmagar a oligarquia paraguaia e conquistara a paz interior estendendo um estrito cordão
sanitário nas fronteiras com os restantes países do vice-reinado do Rio da Prata. As
expropriações, os desterros, as prisões, as perseguições e as multas não tinham servido de
instrumentos para a consolidação do domínio interno dos latifundiários e comerciantes, mas,
ao contrário, tinham sido usados para sua destruição. Não existiam, nem nasceriam mais tarde,
as liberdades políticas e o direito de oposição, mas naquela etapa histórica só os saudosos
dos privilégios perdidos estranhariam a falta de democracia. Não havia grandes fortunas
privadas quando Francia morreu, e o Paraguai era o único país da América Latina que não
tinha mendigos, famélicos ou ladrões[2]; os viajantes da época encontravam ali um oásis de
tranquilidade em meio às demais comarcas convulsionadas por contínuas guerras. O agente
norte-americano Hopkins informava em 1845 ao seu governo que no Paraguai “não há criança
que não saiba ler e escrever”. Era também o único país que não vivia com o olhar cravado no
outro lado do mar. O comércio exterior não se constituía no eixo da vida nacional; a doutrina
liberal, expressão ideológica da articulação mundial dos mercados, carecia de respostas para
os desafios que o Paraguai, obrigado a crescer para dentro por causa de seu isolamento
mediterrâneo, estava equacionando desde o princípio do século. O extermínio da oligarquia
tornou possível a concentração das bases econômicas fundamentais nas mãos do Estado, para
levar adiante esta política autárquica de desenvolvimento dentro das fronteiras.
Os posteriores governos de Carlos Antonio López e seu filho Francisco Solano López
continuaram e revigoraram a tarefa. A economia estava em pleno crescimento. Quando os
invasores apareceram no horizonte, em 1865, o Paraguai contava com uma linha de telégrafos,
uma ferrovia e uma boa quantidade de fábricas de materiais de construção, tecidos, lenços,
ponchos, papel, tinta, louça e pólvora. Duzentos técnicos estrangeiros, muito bem pagos pelo
Estado, colaboravam decisivamente. Desde 1850, a fundição de Ibycui fabricava canhões,
morteiros e balas de todos os calibres; no arsenal de Assunção eram fabricados canhões de
bronze, obuses e balas. A siderurgia nacional, como todas as demais atividades econômicas
essenciais, estava nas mãos do Estado. O país dispunha de uma frota mercante nacional, e
tinham sido construídos no estaleiro de Assunção muitos dos navios que ostentavam a
bandeira paraguaia ao longo do rio Paraná ou cruzavam o Atlântico e o Mediterrâneo. O
Estado virtualmente monopolizava o comércio exterior: a erva-mate e o tabaco abasteciam o
consumo do sul do continente; as madeiras valiosas eram exportadas para a Europa. A balança
comercial mostrava um expressivo superavit. O Paraguai tinha uma moeda forte e estável, e
possuía suficiente riqueza para efetivar enormes investimentos públicos sem recorrer ao
capital estrangeiro. O país não devia nem um centavo no exterior, e estava em condições de
manter o melhor exército da América do Sul, contratar técnicos ingleses que se colocavam a
serviço do país em vez de pôr o país a seu serviço, e enviar à Europa muitos jovens
universitários paraguaios para que se aperfeiçoassem em seus estudos. O excedente
econômico gerado pela produção agrícola não era esbanjado no luxo estéril de uma oligarquia
inexistente, nem ia parar nos bolsos de atravessadores, nem nas mãos rapinantes dos
usurários, nem na rubrica lucros que o Império britânico nutria com os serviços de fretes e
seguros. A esponja imperialista não absorvia a riqueza que o país produzia. 98 por cento do
território paraguaio era de propriedade pública: o Estado cedia aos camponeses a exploração
das parcelas em troca da obrigação de povoá-las e cultivá-las de forma permanente e sem o
direito de vendê-las. Além disso, havia 64 estancias de la patria, fazendas que o Estado
administrava diretamente. As obras de irrigação, represas e canais, e as novas pontes e
estradas contribuíam em importante grau para a elevação da produtividade agrícola. Foi
resgatada a tradição indígena das colheitas anuais, que fora descartada pelos conquistadores.
O alento vivo das tradições jesuítas sem dúvida facilitava todo esse processo criador.[3]
O Estado paraguaio praticava um zeloso protecionismo da indústria nacional e do
mercado interno, especialmente reforçado em 1864; os rios interiores não estavam abertos aos
navios britânicos que bombardeavam o resto da América Latina com manufaturas de
Manchester e Liverpool. O comércio inglês não dissimulava sua inquietude, não só porque
se lhe afigurava invulnerável aquele último foco de resistência nacional no coração do
continente, mas também e sobretudo pela força do exemplo que a experiência paraguaia
irradiava perigosamente para a vizinhança. O país mais progressista da América Latina
construía seu futuro sem investimentos estrangeiros, sem empréstimos da banca inglesa e
sem as bênçãos do livre-comércio.
Mas à medida que o Paraguai ia avançando neste processo, tornava-se mais aguda sua
necessidade de romper a reclusão. O desenvolvimento industrial requeria contatos mais
intensos e diretos com o mercado internacional e as fontes da técnica avançada. O Paraguai
estava objetivamente bloqueado entre a Argentina e o Brasil, e os dois países podiam negar o
oxigênio aos seus pulmões fechando-lhe, como fizeram Rivadavia e Rosas, as bocas dos rios,
ou fixando impostos arbitrários para o trânsito de suas mercadorias. De outra parte, para seus
vizinhos era imprescindível, em nome da consolidação do estado oligárquico, acabar com o
escândalo daquele país que se bastava a si mesmo e não queria ajoelhar-se diante dos
mercadores britânicos.
O ministro inglês em Buenos Aires, Edward Thornton, participou ativamente dos
preparativos da guerra. Às vésperas da deflagração, estava presente, como assessor do
governo, nas reuniões do gabinete argentino, sentando-se ao lado do presidente Bartolomeu
Mitre. Diante de seu atento olhar foi maquinada a trama de provocações e de enganos que
culminou com o acordo argentino-brasileiro e selou a sorte do Paraguai. Venâncio Flores
invadiu o Uruguai, na garupa da intervenção dos dois grandes vizinhos, e depois da matança
de Paysandú estabeleceu em Montevidéu seu governo devotado ao Rio de Janeiro e a Buenos
Aires. A Tríplice Aliança estava em funcionamento. O presidente paraguaio havia ameaçado
com a guerra se o Uruguai fosse tomado de assalto: ele sabia que assim se fechava a tenaz de
ferro na garganta de seu país encurralado pela geografia e pelos inimigos. O historiador
liberal Efraim Cardozo, no entanto, não vê nenhum inconveniente em sustentar que López
confrontou o Brasil simplesmente porque estava ofendido: o imperador lhe negara a mão de
uma de suas filhas. A guerra nascia. Não era obra de Cupido, mas de Mercúrio.
A imprensa de Buenos Aires chamava o presidente paraguaio López de “Átila da
América”. E clamavam os editoriais: “É preciso matá-lo como a um réptil”. Em setembro de
1864, Thornton enviou a Londres um extenso informe confidencial, datado de Assunção.
Descrevia o Paraguai como Dante o inferno, mas punha em evidência o que realmente
interessava: “Os impostos de importação de quase todos os artigos são de vinte a 25 por cento
ad valorem; mas como este valor é calculado sobre o preço corrente dos artigos, o imposto
que se paga chega frequentemente uma cifra entre 40 e 50 por cento do preço da fatura. Os
impostos de exportação são de 10 a 20 por cento do valor...” Em abril de 1965, o Standard,
diário inglês de Buenos Aires, já celebrava a declaração de guerra da Argentina contra o
Paraguai, cujo presidente “infringiu todos os usos das nações civilizadas”, e anunciava que a
espada do presidente argentino Mitre “levará em sua trajetória, além do peso das glórias
passadas, o impulso irresistível da opinião pública por uma causa justa”. O tratado com o
Brasil e o Uruguai foi assinado em 10 de maio de 1865; seus termos draconianos foram
publicados um ano depois no diário britânico The Times, que o obteve dos banqueiros
credores da Argentina e do Brasil: os futuros vencedores repartiam antecipadamente os
despojos do vencido. A Argentina assegurava para si o território de Misiones e o imenso
Chaco; o Brasil devorava uma imensa área a oeste de suas fronteiras. O Uruguai, governado
por um títere das duas potências, não ficava com nada. Mitre anunciou que tomaria Assunção
em três meses. A guerra, contudo, durou cinco anos. Foi uma carnificina, executada ao longo
dos fortins que defendiam, de tanto em tanto, o rio Paraguai. O “oprobrioso tirano” Francisco
Solano López encarnou heroicamente a vontade nacional de sobreviver; o povo paraguaio, que
no último meio século não conhecera guerra alguma, imolou-se ao seu lado. Homens,
mulheres, crianças e velhos: todos se bateram como leões. Os prisioneiros feridos arrancavam
as ataduras para que não os obrigassem a lutar contra seus irmãos.
Em 1870, López, à frente de um exército de espectros, velhos e meninos que punham
barba postiça para impressionar de longe, internou-se na selva. Por traição real ou imaginária,
fuzilou seu irmão e um bispo que com ele marchavam naquela caravana sem destino. Quando,
finalmente, o presidente paraguaio foi assassinado à bala e lançaço na densa mata do cerro
Corá, ainda conseguiu dizer: “Morro com minha pátria”, e era verdade.
As tropas invasoras assaltaram os escombros de Assunção com a faca entre os dentes.
Vinham para redimir o povo paraguaio, e o exterminaram. No começo da guerra, o Paraguai
tinha uma população um pouco menor do que a da Argentina. Tão só 250 mil paraguaios,
menos do que a sexta parte, sobreviviam em 1870. Era o triunfo da civilização. Os
vencedores, arruinados pelo alto custo do crime, estavam nas mãos dos banqueiros ingleses
que tinham financiado a aventura. O império escravista de Pedro II, cujas tropas se nutriam de
escravos e de presos, ainda ganhou territórios, mais de 60 mil quilômetros quadrados, e mão
de obra, pois muitos prisioneiros paraguaios foram levados para trabalhar nos cafezais
paulistas com a marca de ferro da escravidão. A Argentina do presidente Mitre, que havia
esmagado seus próprios caudilhos federais, ficou com 94 mil quilômetros quadrados de terra
paraguaia e outros frutos do butim, segundo o próprio Mitre havia anunciado quando escreveu:
“Os prisioneiros e demais artigos de guerra nós dividiremos na forma combinada”. O Uruguai,
onde os herdeiros de Artigas já estavam mortos ou derrotados, e a oligarquia mandava,
participou da guerra como sócio minoritário e sem recompensas. Alguns dos soldados
uruguaios enviados à campanha do Paraguai tinham embarcado nos navios com as mãos
amarradas. Os três países experimentaram uma bancarrota financeira que agravou a
dependência da Inglaterra. A matança do Paraguai os marcou para sempre.[4]
O Brasil havia cumprido a missão que o Império britânico lhe atribuíra desde os tempos
em que os ingleses transladaram o trono português para o Rio de Janeiro. No princípio do
século XIX, tinham sido claras as instruções de Canning ao embaixador, lorde Strangford:
“Fazer do Brasil um empório para as manufaturas britânicas destinadas ao consumo de toda a
América do Sul”. Pouco antes do início da guerra, o presidente da Argentina inaugurara uma
nova linha férrea britânica em seu país e pronunciara um inflamado discurso: “Qual a força
que impele o progresso? Senhores, é o capital inglês!” Do Paraguai derrotado não
desapareceu só a população: também as tarifas aduaneiras, os fornos de fundição, os rios
fechados ao comércio, a independência econômica e vastas zonas de seu território. Dentro
das fronteiras reduzidas pelo espólio, os vencedores implantaram o livre-câmbio e o
latifúndio. Tudo foi saqueado e tudo foi vendido: as terras e os matos, as minas, os ervais, os
prédios das escolas. Sucessivos governos títeres seriam instalados em Assunção pelas forças
estrangeiras de ocupação. Tão logo terminou a guerra, sobre as ruínas ainda fumegantes do
Paraguai caiu o primeiro empréstimo estrangeiro de sua história. Era britânico, claro. Seu
valor nominal alcançava um milhão de libras esterlinas, mas ao Paraguai chegou menos da
metade; nos anos seguintes, os refinanciamentos elevaram a dívida a mais de três milhões. A
Guerra do Ópio havia terminado quando foi assinado em Nanking o tratado de livre-comércio
que assegurou aos comerciantes britânicos o direito de introduzir livremente a droga no
território chinês. Também a liberdade de comércio foi garantida pelo Paraguai depois da
derrota. Foram abandonadas as plantações de algodão, e Manchester arruinou a produção
têxtil; a indústria nacional não ressuscitou jamais.
O Partido Colorado, que hoje governa o Paraguai, especula alegremente com a memória
dos heróis, mas ostenta ao pé de sua ata de fundação a assinatura de 22 traidores do marechal
Solano López, “legionários” a serviço das tropas brasileiras de ocupação. O ditador Alfredo
Stroessner, que nos últimos quinze anos converteu o Paraguai num grande campo de
concentração, fez sua especialização militar no Brasil, e os generais brasileiros o devolveram
ao seu país com altas qualificações e ardentes elogios: “É digno de um grande futuro...”
Durante seu reinado, Stroessner descartou os interesses anglo-argentinos, dominantes no
Paraguai nas últimas décadas, em benefício do Brasil e seus donos norte-americanos. Desde
1870, Brasil e Argentina, que libertaram o Paraguai para comê-lo com duas bocas, alternamse no aproveitamento dos despojos do país derrotado, mas, por sua vez, padecem o
imperialismo da grande potência do momento. O Paraguai padece duas vezes: o imperialismo
e o subimperialismo. Antes o Império britânico era o elo maior da corrente de dependências
sucessivas. Atualmente, os Estados Unidos, que não ignoram a importância geopolítica desse
país encravado no centro da América do Sul, mantém em solo paraguaio um sem-número de
assessores que treinam e orientam as forças armadas, cozinham os planos econômicos,
reestruturam a universidade ao seu arbítrio, inventam um novo esquema político democrático
para o país e retribuem com empréstimos onerosos os bons serviços do regime[5]. Mas o
Paraguai é também colônia de colônias. Usando a reforma agrária como pretexto, o governo
de Stroessner, fazendo-se de distraído, derrogou a disposição legal que proibia a venda a
estrangeiros de terras das zonas de fronteira seca, e hoje até os territórios fiscais caíram nas
mãos de latifundiários brasileiros do café. A onda invasora atravessa o rio Paraná com a
cumplicidade do presidente, associados a terras-tenentes que falam português. Cheguei à
movediça fronteira do nordeste do Paraguai com cédulas que estampavam o rosto do vencido
marechal Solano López, e ali pude descobrir que só têm valor aqueles que estampam a efígie
do vitorioso imperador Pedro II. O resultado da Guerra da Tríplice Aliança, transcorrido um
século, ganha ardente atualidade. Os guardas brasileiros exigem passaportes dos cidadãos
paraguaios para que possam circular em seu próprio país; são brasileiras as bandeiras e as
igrejas. A pirataria de terra abarca também os saltos do Guayrá, a maior fonte potencial de
energia de toda a América Latina, que hoje se chamam, em português, Sete Quedas, e a zona
de Itaipu, onde o Brasil vai construir a maior central hidrelétrica do mundo.
O subimperialismo, ou imperialismo de segundo grau, expressa-se de mil maneiras.
Quando o presidente Johnson, em 1965, decidiu submergir em sangue os dominicanos,
Stroessner enviou soldados paraguaios a São Domingos para que colaborassem no serviço. O
batalhão se chamou – uma piada sinistra – “Marechal Solano López”. Os paraguaios atuavam
sob as ordens de um general brasileiro, porque foi o Brasil que recebeu as honras da traição:
o general Penasco Alvim comandou as tropas latino-americanas cúmplices da matança.
Exemplos outros e semelhantes podem ser citados. O Paraguai outorgou ao Brasil uma
concessão de petróleo em seu território, mas o negócio da distribuição de combustíveis e a
petroquímica, no Brasil, pertencem aos norte-americanos. A Missão Cultural Brasileira é
dona da Faculdade de Filosofia e Pedagogia da universidade paraguaia, mas os norteamericanos, em nossos dias, manejam as universidades do Brasil. O estado-maior do exército
paraguaio recebe assessoramento não só de técnicos do Pentágono, mas também de generais
brasileiros, que por sua vez respondem ao Pentágono como o eco responde à voz. Pela via
aberta do contrabando, os produtos industriais do Brasil invadem o mercado paraguaio, mas
muitas das respectivas fábricas em São Paulo são, desde a avalanche desnacionalizadora
destes últimos anos, propriedade de corporações multinacionais.
Stroessner se considera herdeiro dos López. Pode o Paraguai de um século atrás ser
impunemente comparado com o Paraguai de agora, empório do contrabando na bacia do Prata
e reino da corrupção institucionalizada? Num ato político em que o partido do governo, entre
manifestações de júbilo e aplausos, identificava o Paraguai de outrora com o de hoje, um
jovenzinho, com a bandeja apoiada no peito, vendia cigarros contrabandeados: a fervorosa
assistência fumava nervosamente Kent, Marlboro, Camel e Benson & Hedges. EmAssunção, a
escassa classe média bebe uísque Ballantine’s em vez da aguardente paraguaia. Veem-se nas
ruas os últimos modelos dos mais luxuosos automóveis fabricados nos Estados Unidos ou
Europa, trazidos ao país de contrabando ou através do pagamento prévio de minguados
impostos, ao mesmo tempo em que circulam carretas de bois carregando lentamente os frutos
para o mercado: a terra é trabalhada com arados de madeira e os táxis são Impalas 1970.
Stroessner diz que o contrabando é “o preço da paz”: os generais enchem os bolsos e não
conspiram. A indústria, no entanto, agoniza antes de crescer. O Estado sequer cumpre o
decreto que manda preferir os produtos das fábricas nacionais nas aquisições públicas. Os
únicos triunfos que, com orgulho, o Estado exibe nesta matéria, são as fábricas da Coca-cola,
Crush e Pepsi-Cola, instaladas em fins de 1966 como contribuição norte-americana para o
progresso do povo paraguaio.
O Estado manifesta que só vai intervir diretamente na criação de empresas “quando o
setor privado não demonstrar interesse”[6], e o Banco Central comunica ao Fundo Monetário
Internacional que “decidiu implantar um regime de mercado livre de câmbios e abolir as
restrições ao comércio e às transações em divisas”; um folheto editado pelo Ministério de
Indústria e Comércio informa aos investidores que o país outorga “concessões especiais para
o capital estrangeiro”. Isentam-se as empresas estrangeiras do pagamento de impostos e de
tarifas aduaneiras “para criar um clima propício aos investimentos”. Um ano depois de
instalar-se emAssunção, o National City Bank de Nova York recupera integralmente o capital
investido. A banca estrangeira, dona da poupança interna, proporciona ao Paraguai créditos
externos que acentuam sua deformação econômica e hipotecam ainda mais sua soberania. No
campo, 1,5 por cento dos proprietários dispõe de 90 por cento das terras exploradas, e se
cultiva uma área equivalente a menos de 2 por cento da superfície total do país. O plano
oficial de colonização no triângulo de Caaguazú oferece aos camponeses famintos mais
tumbas do que prosperidade.[7]
A Tríplice Aliança continua sendo um grande êxito.
Os fornos da fundição de Ibycuí, onde foram forjados os canhões que defenderam a pátria
invadida, estão num lugar que agora se chama “Mina-cué”, que em guarani significa “Foi
mina”.
Ali, entre pântanos e mosquitos, junto à caliça de um muro destruído, jaz ainda a base da
chaminé que, há um século, os invasores explodiram com dinamite, e também os pedaços de
ferro retorcido das instalações desfeitas. Vivem na zona uns poucos camponeses em farrapos,
que nem sequer sabem qual foi a guerra que destruiu tudo aquilo. Contudo, dizem eles que em
certas noites ali se escutam ruídos de máquinas e batidas de martelos, estampidos de canhões
e alaridos de soldados."