Friday, November 18, 2022

RESPONSABILIDADE PENAL SEGUNDO AUGUSTO COMTE

 

A

RESPONSABILIDADE

PENAL

           À LUZ DO POSITIVISMO.

De Augusto Comte

Eng. - Luiz Hildebrando de B. Horta Barboza (25/08/1900 – 11/08/1973). 

 

Convocado pelo eminente professor Roberto Lyra para fa­lar, nesta digna Faculdade de Direito da Universidade do Distrito Federal, sobre a interpretação positivista dos fenômenos psicossociais da responsabilidade, do crime e da penalidade, sinto-me muito honrado por vos ter como ouvintes. Não posso, porém, deixar de confessar-me intimidado ante a complexida­de do assunto que, evidentemente, transcende de muito o cam­po bem mais singelo em que se desenvolvem as minhas ativi­dades profissionais.

 A mentalidade culta, arejada e liberal do professor Ro­berto Lyra, levou-o a convocar-me pela circunstância, talvez, de haver eu sido educado num ambiente em que a Humanida­de e os seus interesses materiais, intelectuais e morais cons­tituem os únicos objetivos da vida e verdadeiros centros de convergência e estímulo para nossas atividades quaisquer.

 Preliminarmente, devo lembrar que o Positivismo consubs­tância, em cada fase histórica, o conjunto dos esforços da co­letividade para bem interpretar as realidades, tendo em vista melhor adaptar o mundo e o homem aos interesses supremos da Humanidade.

           Não é, por isso, o Positivismo obra revelada de um jato por determinado indivíduo, nem o resultado de devaneios filo­sóficos mais ou menos fantasistas de um sonhador excepcional em busca de soluções quiméricas para os problemas humanos, à moda de Platão, Morus, Campanela e tantos outros pensado­res, sem dúvida dignos de nosso respeito, não obstante a ino­cuidade prática de seus esforços, mais poéticos do que cien­tificos.

"O dogma fundamental do Positivismo, expõe Augusto Comte, deve ser concebido, não como o produto instantâneo de uma inspiração geral, mas sim como o resultado progres­sivo de uma imensa elaboração especial, que começou com o primeiro exercício da razão humana e que apenas em nossos dias vem atingindo sua plenitude entre os seus órgãos mais avançados" (Política Positiva, I, p. 24).

 Baseado nas ciências, cujas leis permitem prever os acon­tecimentos e planejar, de modo eficaz, as nossas atividades modificadoras, o Positivismo constitui-se lentamente graças à solidariedade, no espaço, e à continuidade, no tempo, das su­cessivas gerações humanas em busca de níveis sociais cada vez mais elevados de conforto, paz e fraternidade.

 Conquanto sempre superior aos seus órgãos quaisquer, mesmo quando esses órgãos individuais são um Tales, um Aristóteles, um Descartes ou um A. Comte, o Positivismo deve, sem dúvida, aos gênios desse padrão, em cada etapa da evo­lução social, complementações imprescindíveis, bem como a expressão sintética e eficiente dos resultados acumulados até o momento em que viveram esses cérebros excepcionais.

 Adquirindo, nas primeiras décadas do século passado, ex­tensão, profundidade e maturidade suficientes para proporcio­nar à sociedade humana bases positivas à sua existência evo­lutiva, até então envolta em concepções preponderantemente fictícias, o Positivismo teve, em Augusto Comte, o seu melhor e mais completo intérprete, que por isso é reverenciado como o seu fundador.

 Pertencendo à linhagem dos Aristóteles, Bacon, Descar­tes, Diderot e Condorcet, realizou A. Comte a decisiva opera­ção intelectual que o conjunto da evolução humana havia tor­nado oportuna, necessária e mesmo inevitável: a completa substituição da filosofia teológico-metafísica do passado pela filosofia positiva do futuro, segundo a qual as concepções e as construções quaisquer evoluem e se aperfeiçoam à medida que melhores dados experimentais e informações mais precisas são obtidas a respeito do mundo exterior e do próprio homem. 

Vem, assim, proclamar o Positivismo a prioridade objetiva do mundo sobre o homem, cujas vidas vegetativa e mental são alimentadas, estimuladas e reguladas pelo meio exterior. Ao mesmo tempo assinala o Positivismo a preponderância subje­tiva da Humanidade, como força norteadora e como verdadeiro destino de todas as atividades humanas, tanto no campo afe­tivo e mental, quanto no prático.

 Essa descoberta da ciência social explica porque o Posi­tivismo é, do ponto de vista político, o socialismo científico, sobrepondo a Humanidade aos interesses das Pátrias e os inte­resses destas aos das famílias, que as integram. 

Dentro deste quadro das realidades sociológicas, devem, pois, desenvolver-se todas as atividades humanas para que sejam úteis, construtivas e realmente orgânicas. 

Compreende-se, portanto, desde logo, que as concepções positivistas, a respeito da responsabilidade de cada indivíduo pelos seus atos e atitudes quaisquer, devam ser elaboradas quer na base dos fatores de natureza física, biológica, socioló­gica e psicológica, de tais atos, quer tendo em vista as suas finalidades subjetivas, norteadas, em última instância, pelos interesses da Humanidade. 

O estudo científico do comportamento dos animais, em geral, revela que só a maior complexidade orgânica e conse­qüente plasticidade adaptativa dos seres humanos às realida­des exteriores possibilitou ocupassem eles o ápice da escala zoológica. 

Como os outros animais, os homens são dotados de um conjunto de funções que Ihes facultam, através de sensibilida­de e da mobilidade, explorar, a cada instante, as condições vi­gentes no meio exterior, que passam a modificar ou a ele se adaptarem. 

A maior variedade e intensidade das funções nervosas dos homens, principalmente as cerebrais, os habilita, mais do que a qualquer outro animal, a elaborar, da ordem exterior e de si próprios, imagens mais completas e mais próximas das reali­dades objetivas e, portanto, os arma de meios mais eficazes para agir e progredir sob todos os aspectos. 

A modificabilidade da conduta dos seres humanos em fun­ção de condições novas que se Ihes deparam a todo momento e, sobretudo, a capacidade que revelam de se utilizarem, para se decidirem neste ou naquele sentido, das experiências, er­ros e êxitos anteriores, sejam seus, sejam da sociedade de que participam, são na verdade, extraordinariamente superiores às observáveis em todos os outros animais. 

Essa maior adaptabilidade do comportamento humano corresponde, também, as necessidades, desejos e interesses mais complexos. Os instintos, inclinações ou sentimentos ina­tos e resultantes de suas características psicobiológicas here­ditárias estão na base e são a origem de todas as suas ativida­des tanto intelectuais quanto práticas. Os estados volitivos im­pelem o animal a pensar e a agir em proveito próprio, quer para sobreviver - instinto de conservação -, quer para pro­criar - instinto sexual -, ou ainda para destruir os empecilhos que obstam os seus objetivos, ou para construir os meios apropriados a satisfaze-los.

 As atividades correspondentes a esses diversos tipos de impulsos interiores são denominadas egoístas, por visarem exclusiva e diretamente os interesses do indivíduo. A ambição ou necessidade de mando e domínio, geral­mente conhecida pelo nome de orgulho, e também o desejo vaidoso de ser admirado e aplaudido são manifestações su­periores de psiquismo do tipo egoísta.

 Em determinadas espécies animais - tais como formigas, abelhas, aves e, de modo preeminente, os homens - é obser­vável a coexistência, com as atividades egoístas, de atitudes outras, caracterizadas pela abnegação ou desprendimento in­dividual em benefício seja da prole, seja da coletividade. Esse aspecto sui generis de comportamento, simultaneamente cau­sa e efeito da sociabilidade, é, hoje em dia, com Augusto Com­te, denominado altruísta. Os estados psíquicos corresponden­tes revelam, em nossa espécie, três variedades conhecidas por apego, veneração e bondade.

 Semelhante conjunto de funções emocionais ou volitivas, reunido às funções intelectuais de julgamento e deliberação e às de estímulo, inibição ou persistência na ação executiva (co­ragem, prudência e firmeza), corresponde ao que primitivamen­te denominava-se alma e, hoje, ao fenômeno que a ciência dos seres vivos demonstra resultar das atividades fisiológicas do sistema nervoso e, em especial, do cérebro.

 ***

            Os interesses egoístas são a base enérgica e necessária da existência animal, assim como os estímulos altruístas são os que possibilitam a constituição, sobrevivência e progresso das sociedades.

 Na espécie humana, a par de outras notáveis característi­cas anatômicas e fisiológicas, altamente vantajosas, manifes­tam-se, com energia superior, as funções cerebrais da inteli­gência e do altruísmo que explicam o prevalecimento, sobre a terra, de nossa sociedade, com exclusão e progressiva elimi­nação dos outros animais, inclusive dos que possuem organi­zações comunitárias.

 Os homens, quando surgiram como tais, distintos dos an­tropóides, já viviam em sociedade. Nesta, além, da necessária solidariedade que une os indivíduos de cada geração, obser­va-se a continuidade histórica, responsável pela transmissão, de geração a geração, dos frutos das atividades práticas, in­telectuais e morais. Esta última característica da sociedade hu­mana explica o seu rápido progresso em face da quase imobi­lidade das outras organizações animais, onde - como nas for­migas, abelhas, termitas -, se é fortíssima a solidariedade, étênue e praticamente imperceptível a continuidade. 

O trabalho coletivo e conseqüente formação do capital quer prático, quer teórico, em benefício de todos os integran­tes do grupo, é a manifestação básica do fenômeno social. Participando de uma sociedade, todo ser humano, a partir de certa idade e desde que se encontre em condições normais de saúde e educação, é capaz, no campo material, de produ­zir mais do que consome e, no campo dos conhecimentos, de acrescer alguma nova descoberta àquelas que haja recebido, vale dizer, é capaz de gerar trabalho social.

 Os capitais de natureza material, sob a forma de instru­mentos e mantimentos ou provisões, constituem verdadeiras reservas coletivas, disponíveis para o progresso e melhoria  sociais, permitindo, inclusive, a solução progressiva do difíci problema de conciliar a vida biológica ou egoísta com a vida sociológica ou altruísta.

 Melhores bases econômicas tornam possíveis os aperfeiçoamentos intelectual e moral da espécie, fenômenos estes que consolidam os resultados alcançados e fornecem, por sua vez condições para novos progressos materiais. “A ordem moral de toda associação humana, diz Augusto Comte, repousa necessariamente sobre a sua organização intelectual e esta so­bre a sua constituição material." A correlação e interdepen­dência dessas três forças sociais, cada uma das quais é a um tempo causa e efeito das outras duas, não permitem, porém, esquecer que, objetivamente, os fenômenos superiores estão sempre subordinados aos mais grosseiros. Deste modo, os fe­nômenos psicossociais da moralidade e da intelectualidade necessitam, para se produzirem, de um conjunto de condições mínimas propiciadas forçosamente pela materialidade.

 

***

 Dentro do quadro das realidades objetivas, independentes de nossa vontade, conquanto muitas vezes modificáveis por nós, na medida que Ihes descubramos as leis efetivas, deve­mos analisar a tese que nos cabe desenvolver, guiados pelo princípio subjetivo de que quaisquer esforços nossos devem ter em vista servir aos interesses superiores da Humanidade.

 Os conceitos de bem e de mal, de justo e injusto, de mo­ral e imoral, de conveniente e inconveniente, terão de ser de­finidos em relação aos fins (objetivos) e aos interesses humanos de con­forto, paz e fraternidade. Esses ideais, verdadeiros limites lon­gínquos, mas não quiméricos, de todos os nossos anseios de ordem e progresso, coordenarão, cada vez mais, a indústria, as ciências, as artes, a po!ítica, a educação, vale dizer, toda a vida humana, individual e coletiva.

 Evidentemente a teoria estará sempre subordinada à prá­tica, o abstrato ao concreto, o subjetivo ao objetivo, e só as­sim será possível evitar concepções fictícias, ineficazes para guiarem a nossa atividade modificadora do mundo e do pró­prio homem em proveito da Humanidade.

 Estas premissas vão permitir-nos esboçar as concepções próprias ao espírito positivo relativamente à responsabilidade penal. Primeiro procuremos esclarecer os conceitos de liber­dade, de consciência e de responsabilidade para, em segui­da, definir o crime e a reação defensiva ou preventiva da so­ciedade. 

 * *

 A luz do Positivismo, a liberdade de cada qual fazer o que quer existe na medida em que a Humanidade descobre as leis naturais que regem o mundo e o homem, possibilitando, de modo crescente, o domínio e a utilização dos fenômenos correspondentes. O desenvolvimento das ciências cosmológi­cas e antropológicas e a obediência às suas leis são a única fonte e o único limite da liberdade humana. "Nossa inteligên­cia, ensinava A. Comte, manifesta sua maior liberdade quando se torna, segundo seu destino normal, um espelho fiel da or­dem exterior." "Assim, a verdadeira liberdade é por toda par­te inerente e subordinada à ordem, quer humana, quer exte­rior."

 "Longe de ser por qualquer forma incompatível com a or­dem real, acrescentava ele, a liberdade consiste, por toda par­te, em seguir, sem obstáculos, as leis peculiares a cada caso"

 O empirismo popular, aliás, já afirmava, de longa data, que saber é poder. Também Engels dizia, decênios depois de A. Comte, que "a liberdade consiste no domínio sobre nós mesmos e sobre o mundo exterior, fundada sobre o conheci­mento das leis características da natureza: ela é, deste mo­do, necessariamente um produto da evolução histórica".

 O poder ou a liberdade de que dispomos para modificar e adaptar aos nossos interesses quaisquer fenômenos, como, por exemplo, o comprimento das elipses, a área ou o volume das esferas, a velocidade, a direção ou a energia dos corpos em movimento, ou ainda, a temperatura e dilatação deles, a direção e intensidade dos raios luminosos, a composição das substâncias, etc., depende de conhecermos as leis correspon­dentes, que tornam exeqüível nossa ativa interferência em to­dos eles. Desses conhecimentos deriva a indústria moderna, que já conseguiu ir da locomotiva a vapor à televisão colorida e à desintegração do átomo.( É pena que ele, não tenha tido tempo de conhecer tanto avanço científico;mas nos deixou muitas explicações científicas fabulosas)

 Também no campo dos acontecimentos biológicos, a an­tiga impotência e cega submissão dos homens aos azares das moléstias e epidemias imprevisíveis e incontroláveis vêm sen­do substituídas por sua progressiva libertação, graças ao po­der que adquirem de intervir e modificar tais fenômenos, alte­rando ou anulando as suas manifestações desfavoráveis.

 O mesmo poder-se-á dizer a respeito das liberdades so­cial e moral, que eram diminutas e mui restritas nas cabildas e tribos dos tempos idos, onde bem poucos tipos diferentes de comportamento podiam ser escolhidos e adotados pelos in­divíduos. A liberdade dos homens, nesses tempos primitivos, pouco diferia da dos mamíferos superiores, em que pesem os estados de felicidade e liberdade idílicas, imaginados por J. J. Rousseau como tendo existido antes de se haverem os ho­mens jungido à canga representada pelas exigências da vida social.

 "Os primeiros homens que se diferenciaram do reino ani­mal, concorda Engels, eram, sob todos os aspectos essenciais, tão pouco livres quanto os próprios animais; mas todo progres­so no sentido da civilização foi um passo para a liberdade."

 A liberdade não é, pois, um dom do céu, mas uma con­quista social, o fruto de um longo esforço da coletividade humana para superar a animalidade primitiva que a limitava e dominava.

 

***

 De qualquer modo é preciso ter em vista que são esses conhecimentos práticos e teóricos a respeito do mundo e do homem, inicialmente precários, insuficientes e, em larga mar­gem, supridos e completados por ficções fantasiosas (ade­quadas, porém, à justificação e à proteção das instituições so­ciais vigentes), que participam da formação da consciência de cada indivíduo, condicionando-Ihes a vontade.

 A consciência, com efeito, ao contrário de ser um estado in"ato do psiquismo humano, uma voz interior que aponta o bem e condena o mal, não sujeita a influências modificadoras quaisquer, é - também ela - lentamente formada e continua­mente alterada pela ação do meio exterior, tanto físico quanto social.

 Antes da extensão da positividade às ciências do homem individual e coletivo, "a consciência não podia ser nitidamente te apreciada, afirma A. Comte, por falta de se conceber o es­tímulo simpático que, suficientemente assistido pela inteligên­cia, controla as inspirações viciosas. Mas a sua teoria positi­va permitirá aplicá-Ia melhor, invocando de modo adequado cada um dos seus dois elementos, igualmente cultivados, me­diante a educação universal" (Política Positiva, IV, p. 334).

 Resultando de complexíssimo conjunto de atividades do cérebro, a consciência reflete e combina, em cada circunstân­cia, os instintos, inclinações emotivas, aptidões intelectuais e tendências práticas de que o indivíduo é dotado hereditaria­mente, com as experiências, erros e êxitos de toda natureza, quer passadas, quer presentes, provenientes de suas relações com o meio cósmico e social.

 Nos estados volitivos, intervém a consciência com todo o peso dos seus antecedentes biológicos e psicossociais, para induzir o indivíduo a deliberações de que resultam as suas atividades. O comportamento adotado será classificado como normal, se convergente e harmônico com os interesses da so­ciedade, e anormal, no caso contrário.

 Se o homem age contrariando a sua consciência, sobre­ virá, em geral, um estado psíquico denominado remorso, que é a expressão da auto-reprovação e do pesar por ter agido mal. Se não há remorso, o indivíduo será considerado incons­ciente ou excessivamente egoísta.

 Para Henri Roger, "a consciência é a mais importante fa­culdade do cérebro, porque explica e assegura a personalidade humana e nos dá a dupla sensação da liberdade e da es­pontaneidade; ela faz surgir deste modo um sentimento novo, o sentimento da responsabilidade, que conduz à satisfação e ao orgulho de si próprio ou, ao contrário, à humildade, ao arre­pendimento e ao remorso".

             Mas a vontade é instável. sofrendo a influência modificadora de numerosos fatores. Não é a mesma dia após dia, po­dendo, inclusive, sofrer, em condições especiais, variações bruscas e de grande intensidade.

 Há, portanto, margem e fundamento para a concepção, que domina a escola antropológica ou positiva, de que a li­berdade da vontade é mera impressão subjetiva, sem realida­de concreta.

­Pondo de lado, apesar de sua real importância, a herança biológica ou genotípica a que está condicionada a persona­lidade básica do indivíduo, devemos sublinhar as condições físicas, bio-econômicas e educacionais, criadas pela socieda­de e subordinadas às quais nascem, crescem e morrem os seus elementos componentes.

 É, porém, a educação propriamente dita, vale dizer, a as­similação pelo indivíduo dos recursos teóricos, estéticos e prá­ticos da respectiva sociedade e também dos seus hábitos mo­rais, tradições e costumes, o que mais pesa para o tipo de comportamento que finalmente será por ele adotado.

 A influência preponderante do meio social, para a forma­ção do indivíduo e de seu psiquismo, é tão inconteste, quanto a importância do êxito dessa operação para a vida da pró­pria comunidade. Mesmo não se levando em conta a crescen­te responsabilidade da sociedade relativamente às taras he­reditárias, cuja melhoria ou eliminação já lhe estiver ao alcan­ce, mediante processos eugênicos, cabe-lhe, sem dúvida, o dever de proporcionar e até, em certos casos, impor a cada um de seus elementos, na medida dos recursos disponíveis, todos os processos econômicos, intelectuais e morais adequa­dos à boa formação da respectiva personalidade.

 A eficiência dessa tarefa social varia muito, não só em função da receptividade constitucional ou hereditária de cada indivíduo, como também em função dos meios efetivamente aplicados.

 Evidentemente, a capacidade e os recursos disciplinado­res das sociedades foram mínimos e grosseiros nos tempos remotos, avultando lentamente com o progresso geral. Tam­bém reduzidos eram os hábitos e costumes inculcáveis a ca­da componente das singelas sociedades de então. 

A ação educadora, espontânea ou sistemática, realiza-se, nas crianças, mediante a situação natural em que elas se en­contram de submissão involuntária aos pais e aos mais velhos em geral. A tendência inata a imitar e identificar-se, mental e praticamente, com o meio em que se vive, adotando as idéias e atitudes preponderantes naqueles com os quais se coabita 

A educação sistemática juntamente com a educação es­pontânea, resultante da vida quotidiana num determinado meio social, são as principais formadoras da consciência.

 "Do ponto de vista sociológico, diz Marx Nordau, a moral é um laço que liga os indivíduos à sua comunidade, único fun­damento sobre o qual a sociedade pode nascer e se manter. Porque ela é a vitória sobre o egoísmo e significa a simpatia pelo próximo, o reconhecimento de seus direitos, a solidarie­dade com ele, mesmo no caso em que haja necessidade de uma possível renúncia às vantagens de que se dispõe e o abandono doloroso de satisfações que se poderiam alcan­çar."

 A moral é, portanto, a condição a que se devem submeter os indivíduos para continuarem a participar da vida social. Sem a sociedade o homem não pode subsistir mas, por outro lado, a sociedade não pode sobreviver sem a moral. 

***

 Dentre a imensa gama de regras morais, destacam-se umas tantas de valor imperativo. Constituem elas um conjunto de normas de abstenção, um mínimo de abnegação e de con­tenção egoística, em favor da coletividade e que esta impõe a todos os seus integrantes.

 No entanto, nem sempre consegue a sociedade, de todos os seus membros, suficiente unidade e convergência de senti­mentos, de concepções e de atitudes práticas. Haverá sempre uma dispersão de resultados. Em geral, a maioria é assimilada razoavelmente. Duas pequenas minorias extremas ficam além ou aquém da média. Uma supera a moral vigente, apresentan­do-se, nos casos de sublimação, verdadeiramente revolucio­nária, pioneira, com freqüência incompreendida e, inclusive, repelida. A segunda minoria fica abaixo dessa moral básica, não a. respeitando nem mesmo naquilo que ela tem de mais grosseiro e indispensável à preservação da vida social.

 Os indivíduos deste último tipo, transgressores da moral consubstanciada nas Ieis penais, são os criminosos propriamen­te ditos, excluindo-se, porém, os idiotas, os alienados, os lou­cos e os de menor idade, cuja irresponsabilidade é reconheci­da nas civilizações mais evoluídas, como decorrência de radi­cal incapacidade psíquica, seja congênita ou adquirida, seja: ainda por não se haver completado o desenvolvimento orgâ­nico.

 As ações e reações da sociedade assumem, nos casos de crime, a forma de repressão penal, fenômeno espontâneo, ligado ao instinto coletivo de conservação. Reação dolorosa, mas inevitável, sob pena de desorganização, dissolução e pereci­mento.

         Assim como a liberdade é uma decorrência da ciência e da técnica propiciadas pela sociedade, também a responsabi­lidade só faz sentido como fenômeno social ou em relação à sociedade. 

O homem isolado, nascido e crescido fora de qualquer comunidade - hipótese sabidamente inverificável -, não teria a menor liberdade em relação à natureza a que teria de subor­dinar-se cegamente, sem qualquer capacidade para modificá­-Ia. Também não teria nenhuma responsabilidade, nem deve­res, nem direitos.

 Mas que responsabilidade tem o delinqüente?

 A chamada escola clássica, baseada em Beccaria, de tra­dição católica, responde afirmando a inteira responsabilida­de do delinqüente, como resultado do livre arbítrio inerente à alma humana, esclarecendo Bossuet que o homem é moral­mente livre, porque pode dispor de seus atos sem motivos ou­tros além dos que resultam de sua vontade.

 Firmados nos mesmos livros sagrados, Lutero, Calvino e reformadores outros, cregam à predestinação absoluta, por considerarem todos os atos humanos, mesmo os mais insig­nificantes, predeterminados de toda eternidade, porquanto já sabidos e decididos pela onisciência e onipotência de Deus, para quem, não havendo tempo, nem empecilhos, tudo é pre­sente e tudo é possível. 

A escola italiana, chamada antropológica ou positiva ori­ginada dos trabalhos de Lombroso e Ferri, inspirada em Bro­ca, Gall e, principalmente, no espírito científico, então esten­dido à sociologia e à psicologia por Augusto Comte, respon­de negando o livre arbitrio, isto é, a vontade incondicionada que considera mera ilusão subjetiva.

 A conclusão dessa célebre escola penal coincide com a de Calvino, conquanto inteiramente diversos os motivos. O fa­talismo calvinista decorria dos atributos de Deus. O determi­nismo absoluto da escola antropológica resultou de uma insu­ficiente compreensão das leis naturais, isto é, da real coexis­tência física da imutabilidade e da modificabilidade em todos os fenômenos naturais.

 ***

 Só a teoria positivista do conhecimento, isto é, só a epis­temologia exposta por Augusto Comte no conjunto de sua obra filosófica, fornece a chave do problema, mostrando como se harmonizam a imutabilidade fundamental das relações de in­terdependência dos fenômenos uns com os outros com a mo­dificabilidade praticamente infinita de todos os acontecimen­tos naturais que ocorrem no universo. O necessário e o con­tingente, a fixidez e a variabilidade, coexistem na realidade objetiva dos seres e das coisas cósmicas e humanas.

 A lei mater que domina toda a positividade científica, e que foi enunciada pelo grande pensador, é aquela segundo a qual tudo quanto o nosso entendimento concebe ou imagi­na, com o objetivo de bem representar as realidades, corres­ponde a hipóteses ou suposições construídas mediante o que é obtido do exterior por intermédio dos sentidos (8 SENTIDOS)                     .

 Essas hipóteses, gradativamente, à medida que se acumu­lam novos dados experimentais a respeito dos fenômenos ou acontecimentos a que se referem, evoluem, modificam-se e se tornam cada vez mais próximas da realidade.

 Outro princípio universal ligado a este assunto resulta de uma indução baseada em milenar e incessante experiência, que nunca deixou de confirmar a existência de leis imutáveis, independentes de vontades arbitrárias, regendo os fenômenos, conquanto a formulação dessas leis só se torne possível me­diante o uso da abstração. ( Vide Teoria da Abstração segundo  Augusto Comte)

 Nem o mundo nem os homens são estáticos, inertes. Pelo contrário, há neles constantes atividades que acarretam contínuas ações e reações, dando lugar a incessantes modifica­ções. Caso não houvessem, entre os fenômenos, leis ou relações necessárias de interdependência de causa e efeito, ligando e encadeando, de modo imutável, os sucessivos aconte­cimentos, teríamos um verdadeiro caos, onde tudo seria in­certo, imprevisível, indeciso e fortuito.

             Aos homens seria então impossível outra atitude que não a de cruzarem, impotentes, os braços.

           A lei, como a expressão da constância que se consegue descobrir no seio das variações, aparentemente desordena­das, das atividades ou fenômenos da natureza, estende-se a tudo e a todos, mesmo àqueles setores da ordem cósmica e antropológica ainda não pesquisados. A convicção indutiva, assim adquirida, da imutabilidade das leis científicas, como que subordina os acontecimentos quaisquer a um determinis­mo inflexível, a um fatalismo inexorável, ante o qual, como no caso anterior do indeterminismo absoluto, os homens teriam também de cruzar os braços, por nada poderem fazer.

 Um outro princípio universal corrige esse engano, mos­trando-nos que é possível interferir, dentro de certos limites, na maioria dos acontecimentos reais. O que é imutável é o modo segundo o qual as variações de um dado fenômeno es­tão ligadas às de outros que com ele concorrem um aconte­cimento qualquer. A modificabilidade restringe-se, em todos os casos, à intensidade dos fenômenos, sem perturbar a corre­lação de interdependência quantitativa, que subsiste inalterável. Nem o fatalismo determinista absoluto, nem o livre arbítrio indeterminista, também absoluto, são, portanto, noções positi­vas, não correspondendo às observações e às experiências reais da ordem cósmica e humana.

           A modificabilidade, porém, será tanto maior e mais variada quanto mais complexo for o acontecimento, isto é, quanto maior o número de fatores que intervêm na sua produção.

 Daí a extrema variabilidade dos acontecimentos superiores: biológicos, sociológicos e principalmente morais. Os fenôme­nos dessa natureza estão subordinados a tão grande núme­ro de modificadores, que as suas manifestações assumem, por vezes, aspectos de acidentais e contingentes.

 Na prática, contudo, a variabilidade quantitativa dos fe­nômenos não é sem limites, isto é, não se verifica para qual­quer intensidade. Enquanto ela se mantém dentro de certos graus, a natureza propriamente dita do acontecimento não se modificará. Se, no entanto, a intensidade dos elementos con­dicionadores ultrapassar àqueles limites, poderá sobrevir pro­funda transformação na natureza do fenômeno em causa. As variações de temperatura, por exemplo, acarretam alterações diversas num bloco de gelo ou numa folha de papel. Dentro de certos valores dessa variação térmica, o gelo continuará gelo e o papel não deixará de ser papel. Subindo, porém, a temperatura além desses limites, o gelo liquifar-se-á e o pa­pel se carbonizará. As variações de quantidade ou de inten­sidade podem, portanto, produzir modificações qualitativas.

 Do ponto de vista objetivo, todos os fenômenos ou acon­tecimentos são naturais e normais em qualquer grau que se apresentem. Já subjetivamente, levando-se em conta as con­veniências humanas, haverá, em cada caso, intensidades mais vantajosas e mais favoráveis do que outras. Esse critério, ex­clusivamente subjetivo, levou à introdução das noções de es­tados normais e anormais.

 Em biologia, as atividades orgânicas, além de certa in­tensidade, são classificadas como patológicas.

 Do mesmo mo­do, o justo e o injusto, o moral e o imoral, a virtude e o crime, etc., são todos igualmente fenômenos psicossociológicos, que diferem apenas pelo grau de afastamento ou de coincidência com os tipos normais instituídos, em cada época, na conformi­dade dos interesses da civilização vigente. 

* * *

 Mediante estes rápidos esclarecimentos, talvez se torne possível compreender as concepções que, a propósito dos de­linqüentes e da responsabilidade penal, esboçaram Augusto Comte e os seus discípulos mais próximos e fiéis.

 Direta e especificamente, o grande filósofo apenas abor­dou, a respeito, algumas considerações gerais ao longo do desenvolvimento de suas teorias sociológicas e morais.

 Devemos recordar, antes de mais nada, que Augusto Com­te analisou e condenou, como já historicamente superado, o velho direito, correspondente à civilização teológico-militar. Mostrou ele, então, que a nova civilização pacífico-industrial substituirá, progressivamente, o fictício direito individualista pelo direito socialista, decorrente dos deveres de todos para com todos. O direito, à luz do Positivismo, representa, portan­to, aquilo que cada um pode exigir dos outros, para assegu­rar-se das condições indispensáveis ao cumprimento de seus deveres domésticos, cívicos e universais.

 O direito civil e o criminal são, deste modo, as regras e os processos mediante os quais são garantidos ou impostos pela sociedade, a cada um de seus integrantes, os meios e as condições para o bom cumprimento dos respectivos deveres (sociais). 

De acordo com tal concepção, os direitos que antigamen­te se arrogavam os governos, quer temporais, quer espirituais, de castigar os culposos, substitui Augusto Comte o de­ver que Ihes incumbe de prevenir todas as tendências dissol­ventes da sociedade, mediante os recursos econômicos, inte­lectuais e morais de que dispõem, bem como o de reprimir e corrigir os delinqüentes, reparando, tanto quanto possível, os malefícios ocasionados.

 Os governos espirituais - padres, médicos, advogados, jornalistas, filósofos, poetas, cientistas e literatos - deverão empregar os recursos intelectuais e morais, convencendo, per­suadindo, educando e, por fim, apelando para as sanções da opinião pública. Os governos temporais, dirigindo ou reprimin­do os atos práticos, aplicam os meios materiais, principalmen­te os econômicos e, em última instância, a compulsão física da força policial.

           Para documentar os ensinamentos do fundador do Posi­tivismo, julgamos oportuno traduzir, livremente, os seguintes trechos característicos de sua Política Positiva.

 "Conquanto nossa existência não possa ser regulada sem o concurso dos dois poderes governamentais - temporal e espiritual -, esse encargo cabe principalmente às forças espirituais. Exercendo, em nome da Humanidade, os poderes de repressão e de direção, resultantes da educação, o poder es­piritual disciplina as vontades, individuais ou coletivas, invo­cando primeiro os sentimentos, depois a razão e por fim a opi­nião pública. Devendo ter império exclusivamente sobre os atos, isto é, sobre o comportamento prático dos indivíduos, o governo temporal pode unicamente completar a disciplina mo­ral, instituindo, para os casos mais grosseiros e mais urgen­tes, uma força preventiva ou corretiva. Esse complemento ma­terial e copulsório, porém, sem que nunca possa desapare­cer, deve reduzir-se progressivamente, à medida que a civili­zação desenvolve e aprimora a formação moral e intelectual do povo, crescendo o poder irresistível da opinião pública" (Polí­tica Positiva, IV, pp. 279/280).

 "A necessidade de recorrer à repressão física, continua Augusto Comte, revela as falhas da constitução social. Con­quanto esse recurso extremo deva tornar-se cada vez mais excepcional, não cairá jamais em desuso total, por isso que existirão sempre personalidades viciosas, das quais a Huma­nidade deverá preservar-se, sem poder esperar corrigi-Ias com­pletamente. Gall  observou sabiameme, a esse respeito, que a total abolição da pena de morte, sonhada por uma vaga filan­tropia, seria diretamente contrária às leis positivas de nossa natureza individual. Ouso acrescentar que ela feriria ainda mais as que são próprias ao organismo coletivo. Contudo, esse derradeiro recurso da Humanidade contra as depravações ra­dicais deve certamente tornar-se cada vez mais excepcional, sob a influência de uma adequada educação universal e duma sábia sistematização da vida social" (Política Positiva, 11, p. 419).

 Como curiosidade, devo acrescentar que não admitia A. Comte fosse imposto aos criminosos, como castigo, o traba­lho. Segundo o positivismo, é o trabalho uma das mais eleva­das manifestações do altruísmo. "O positivismo, esclarece o filósofo, fará apreciar a verdadeira dignidade do trabalho, que a teologia havia representado como resultado de uma maldi­ção divina. Quando for aplicado ao regime de correção, o po­sitivismo converterá a ociosidade forçada numa das mais ter­ríveis punições" (Política Positiva, 11, p. 415).

 Dos discípulos europeus de A. Comte, quem, com maiores estudos, desenvolveu e detalhou as suas concepções a pro­pósito do problema que vimos focalizando, foi P. Dubuisson, cuja obra saiu publicada em 1911, sob o título Responsabitité Penale et Folie-Étude Médico-Legale.

 Num dos trechos característicos daquela obra, lê-se: "A doutrina de A. Comte serviu de base a todos os capítulos des­te trabalho; expomos uma teoria positiva da responsabilidade e tentamos dar uma teoria positiva da loucura."

 "A sociedade, continua o autor, não pune com o objetivo de expiação, nem para estabelecer compensações entre as fal­tas e os castigos; ela pune para se defender, para intimidar o culpado e também para emendá-Io. Nas perícias médico-legais, não se pode, pois, cuidar de responsabilidade moral, mas de responsabilidade socia!." 

"Prevalecendo a doutrina da preeminência dos direitos da sociedade sobre os do indivíduo, conclui-se que, mesmo quan­do, do ponto de vista moral, para um mesmo delito, o indivíduo mal nascido, mal educado e sob exaltação passional, é julgado menos culpado do que o indivíduo sadio, bem educado e pon­derado, do ponto de vista social, é o segundo quem deve so­frer a pena mais severa, porquanto, para ser intimidado, ele necessita de um castigo mais duro." 

"De um modo geral, não existem no mundo dois delin­qüentes com responsabilidades iguais, por isso que não existem no mundo dois homens que sejam exatamente idênticos. Tudo na vida, da nascença à morte, tende a diferençá-Ios: desde a constituição cerebral hereditária, até as disposições, aptidões, educação, meio, hábitos, moléstias anteriores, estado físico no momento do crime, circunstâncias especiais, conselhos, ne­cessidades e outras tantas particularidades que ocasionam di­versidades." 

Desse quadro, conclui Dubuisson que a penalidade na ba­se da responsabilidade moral, conduz a uma dificuldade insu­perável: a necessidade de apurar o grau de imputabilidade de cada criminoso. "Quem não vê, diz ele, a dificuldade de se es­tabelecer a equação moral de um indivíduo? A outra conse­qüência seria que aos criminosos mais perigosos caberiam pe­nalidades mais suaves e até mesmo a absolvição, porque se­riam os menos responsáveis moralmente e menos capazes de compreenderem o valor moral de seus atos e os mesmos resistentes aos choques das paixões”. 

Depois de segura argumentação, defende Dubuisson o princípio positivista do interesse social, como a única base le­gítima para uma teoria penal capaz de reprimir, sem exageros e poupar, sem debilidade: "O interesse social, acrescenta ele, quer que se pese o criminoso mais do que o crime e que nos preocupemos mais com o perigo que o homem representa pa­ra a sociedade do que com o ato por ele cometido. Esse prin­cípio procura emendar, erguer o criminoso, e admite que se levem em consideração as circunstâncias e os móveis e que não se trate o assassino por questão de honra em pé de igual­dade com o que é por interesse. Precisamente porque a socie­dade não julga para vingar-se, mas simplesmente para se pre­servar, pode ela ser clemente, não conhecendo outro limite, para sua indulgência, além do que exige a sua segurança." 

"O princípio de que sem responsabilidade moral não po­derá haver penalidade conduziria, cedo ou tarde, mas fatal e logicamente, à absolvição dê todos os delinqüentes, como mo­ralmente irresponsáveis, salvo se Ihes desse lugar, na qualida­de de doentes, nos asilos de alienados." 

Resumindo: Dubuisson defende a existência da responsa­bilidade social do delinqüente intimidável, porque o homem mais pervertido, desde que sua inteligência seja suficiente e que o processo de intimidação seja assaz enérgico, pode resis­tir aos seus maus pendores, derrotar o seu egoísmo, superar a fatalidade decorrente de sua organização. Para ele, num da­do momento o indivíduo se revela incapaz de bastar-se a si próprio. Os seus sentimentos altruístas mostram-se impotentes. A cupidez, a sexualidade e o instinto destruidor o dominam. A inteligência, em face da intimidação penal, mostra-lhe, porém, as conseqüências danosas e nocivas, para ele próprio, que so­breviverão de suas atitudes egoístas e criminosas. A ameaça de morte, outra coisa não seria, em suma, senão o mais enérgico dos processos de intimidação, isto é, de ação modificadora da sociedade, cuja série inicia-se modestamente com o medo do que dirão? 

A intimidação é um fenômeno psíquico-social e nada tem a ver com a responsabilidade moral absoluta. A sociedade cabe aplicar processos inibitórios, tanto mais enérgicos quan­to maior for a dificuldade revelada pelo indivíduo para se con­ter e vencer os seus impulsos criminosos. Falhando esses meios repressivos, o delinqüente não é propriamente um responsável, mas um doente do cérebro, um demente enfim.

 Quaisquer que sejam as dificuldades e as dúvidas que se possam levantar contra essa concepção, o principal é que Du­buisson conclui no sentido do princípio da responsabilidade social do delinqüente e do dever que cabe à comunidade de se defender, sem qualquer intuito de estabelecer equivalência en­tre os crimes e os castigos.

 No pequeno trabalho que redigiu em 1894 sob o título O Regime Republicano e o Novo Projeto de Código Penal, Rai­mundo Teixeira Mendes, o mais credenciado discípulo brasi­leiro de Augusto Comte, explica que, "ao lado da massa geral dos cidadãos normais, existe pequena fração de naturezas des­graçadas que, em graus diversos, são inaptos para a vida so­cial, ou por excesso de egoísmo ou por deficiência de altruís­mo. A influência da educação sistemática (instrução) é secundária para os modificar. Porque se essa influência tivesse o caráter capi­tal que lhe querem atribuir, todos os indivíduos dela privados seriam maus. A experiência, porém, demonstra o contrário. As naturezas ruins brotam apesar dos cuidados da sociedade, já para impedir seu advento, já para corrigi-Ias. Só a cega fatalidade poderia ser recriminada por semelhantes aberrações. Esses indivíduos, entregues a si próprios, são levados a aten­tarem contra as condições mais elementares da existência co­letiva. É para com eles que o governo tem de tornar-se repressivo, indo até à sua eliminação, quando atos decisivos tornam patente a sua radical insociabilidade".

 "É assim, acrescenta Teixeira Mendes, que surge a legis­lação criminal que tem por objeto garantir a disciplina humana, impedindo que pequeno número de díscolos viole os requisitos mais grosseiros da ordem e do progresso."

 Em outro trecho, baseado no princípio do interesse social, declara Teixeira Mendes que a embriaguez deve ser conside­rada como agravante, porque nesse estado o homem está ex­posto a cometer crimes, cumprindo-lhe, portanto, evitar essa predisposição, cuja responsabilidade penal lhe caberá. A pers­pectiva da severidade das penas, o medo em uma palavra, é um dos fatores inibitórios mais poderosos para conter as naturezas mal formadas.

           A propósito da pena de morte, defende Teixeira Mendes o ponto de vista de Augusto Comte, que era contrário à sua supressão, não só pelo seu valor preventivo, como também por corresponder a uma necessidade de defesa social contra as naturezas radicalmente más. O poder inibitório das penas e, em especial, da pena capital, é fundado na grande energia do instinto de conservação individual. Na generalidade dos casos é esse instinto assaz forte para induzir os indivíduos a atitu­des mais prudentes. O terror da morte consegue muitas vezes o que o medo de outros castigos não alcançaria. 

"É lamentável, acrescenta Teixeira Mendes, que a imper­feição da ordem natural imponha à Humanidade práticas tão dolorosas que, no entanto, irão se tornando cada vez mais ex­cepcionais, poupando às naturezas boas as aflições e os cho­ques emocionais que tais eventos ocasionam." 

Para exemplificar o modo pelo qual o problema da respon­sabilidade penal é encarado entre os adeptos da Religião da Humanidade, citarei, por último, Luiz Lagarrigue, provecto dis­cípulo chileno de A. Comte e autor de um trabalho publicado em 1921, sob o titulo de Naciones Positivas de Justicia Crimi­nal. 

"É o império da vontade altruísta sobre a vontade egoísta, diz ele, o que determina o cumprimento espontâneo dos deve­res e o triunfo do bem e da virtude. A sociedade dispensa sua confiança e concede liberdade aos individuos, na proporção do grau de altruísmo e dos bons hábitos que supõe existir ne­les. Essa confiança e essa liberdade são a base da responsa­bilidade social que Ihes cabe. Perdida a confiança, a socie­dade coarta a liberdade do indivíduo, o que equivale a declará-Io irresponsável." 

"Aos que não merecem a confiança social, como as cri­anças, os loucos e os criminosos, a sociedade põe sob a tute­Ia dos pais, dos enfermeiros ou dos carcereiros, que se tornam, desde então, os responsáveis pela conduta de seus pupilos." 

"A responsabilidade é, pois, uma instituição social diretemente relacionada com a confiança e a liberdade que a sociedade outorga aos indivíduos. Tal responsabilidade não leva em conta os móveis determinantes da conduta individual, por­quanto, sob o ponto de vista social, não se trata de apreciar as circunstâncias existentes, atenuantes ou agravantes do de­lito, para medir a pena, mas sim de obrigar ao cumprimento daqueles deveres que são condição, inclusive, da existência social." 

"Quando se pretende inspirar com o castigo, apenas te­mor, comenta Lagarrigue, ele se torna selvagem e corruptor. Se o homem despreza a condenação, suporta o castigo como um martírio." 

"É evidente que o temor do castigo não tem nenhuma in­fluência nas almas em que ainda não germinou a intenção de­lituosa. Mas a ação moral da pena se faz sentir quando há o propósito malévolo e está o indivíduo sob a tentação e a pon­to de cometer o crime. Então o temor pode reprimir o delito. A finalidade social do castigo, surgida depois de longa evolução histórica, concebe a pena como uma condição determinante da conduta." 

"A propósito da pena capital, escreve ainda Lagarrigue, devemos, por fim, considerar os casos desgraçados de delin­qüentes ferozes, cuja correção é impossível. Sua reclusão per­pétua poderia constituir um martírio inaceitável para uma so­ciedade civilizada. Cabe, nesses casos extremos, eliminar es­sas vítimas dos instintos egoístas, sem dar, porém, à sua mor­te o caráter de pena ou castigo. Sob a noção positiva dos in­teresses da Humanidade, as existências daninhas, sejam hu­manas, animais ou vegetais, devem ser eliminadas." 

***

 Pessoalmente, diz L.. H. B. Horta Barboza sinto-me demasiadamente pequeno para dar um balanço em tão vasto e complexo campo dos conheci­mentos e das instituições sociais.

 De conformidade, porém, com o meu entendimento, longa­mente formado dentro do positivismo e alimentado pela Reli­gião da Humanidade, creio poder sumariar as concepções que, a esse respeito, integram o meu quadro cerebral, mediante os seguintes parágrafos finais.

 Excluindo-se as crianças, cujo desenvolvimento psicosso­mático ainda não se completou, serão considerados como so­cialmente anormais os indivíduos que, permanentemente ou não, se revelam incapazes de adaptarem sua conduta às exi­gências mais grosseiras da vida social. Essa incapacidade, de corrente da constituição orgânica, quer congênita, quer adquirida, manifestar-se-á, nos casos dos idiotas, loucos ou demen­tes, por inépcia, confusão ou superexcitação intelectual, e, nos casos dos delinqüentes, pela excessiva preponderância dos instintos egoístas, não obstante manter-se plena a lucidez men­tal, tendo o próprio criminoso consciência de que os seus atos são reprováveis e nocivos. 

Os idiotas, loucos e dementes não são classificados pela sociedade como imputáveis, conquanto se veja ela na contin­gência de adotar, em relação a esses infelizes, provídências de defesa para anular-Ihes a possível periculosidade, ao mesmo tempo que procura adquirir recursos mais eficientes para curá-Ios e recuperá-Ios. 

Os delinqüentes propriamente ditos seriam apenas aque­les que, dotados de inteligência normal, são no entanto escra­vos de seus instintos pessoais ou egoísticos, anormalmente enérgicos e em função dos quais meditam e agem. 

Conquanto não seja lícito atribuir-se-Ihes responsabilidade moral, no velho sentido teológico-metafísico, cabe-Ihes, peran­te a coletividade, aquela responsabilidade sociológica que a experiência multissecular da espécie humana e o bom-senso da opinião pública, em todos os tempos e em todos os luga­res, nunca deixou de reconhecer, através infinitos matizes e va­riações ao longo da história. 

É que a sociedade considera, de um modo geral, como responsáveis os indivíduos, delinqüentes ou não, dotados de capacidade intelectual para avaliar os seus atos, comparan­do-os com outros também possíveis. 

A escolha entre muitos atos igualmente exeqüíveis é feita, porém, não só na base da razão, mas também na dos interes­ses e desejos dominantes. Se os desejos são egoístas, violen­tos e incontroláveis pelos conselhos da razão, não cabe res­ponsabilidade moral, mas é a esse fenômeno psíquico que se denomina responsabilidade social. Essa forma e esse critério da responsabilidade é classificada como social porque não po­de ocorrer no homem isoladamente, desligado da sociedade. A razão do delinqüente apresenta-se suficientemente formada pela sociedade e sabe distinguir os atos bons dos maus. Os seus instintos egoísticos é que permanecem demasiadamente intensos, impedindo a escolha das atitudes boas, que a cons­ciência inexorável aponta. 

Pode não haver culpa. Mas subsiste a responsabilidade pe­rante a sociedade, que agirá sobre o delinqüente procurando frear o seu egoísmo, mediante várias formas de intimidação e que, inclusive, o imputará sempre que o ato criminoso venha a ser cometido. 

A ação penal da sociedade é, portanto, ao mesmo tempo, um indispensável processo de defesa coletiva e um eficiente auxílio ao indivíduo em seus eventuaís esforços para reprimir os próprios impulsos anti-sociais.

 * * *

 Tudo que acabamos de expor terá sido, quando muito, pá­lida súmula dos atuais resultados das análises e pesquisas po­sitivas a respeito do complexo e importante problema psicos­social da responsabilidade penal. 

Os nossos conhecimentos científicos ainda não esgotaram esse dificílimo fenômeno, nem o penetraram de modo a nos permitir uma conceituação precisa de seus elementos carac­terísticos. As ciências correspondentes estão no ápice da es­cala enciclopédica. Por isso mesmo só mui recentemente fo­ram abordadas pelo espírito positivo (Inteligência Científica), que ainda não pôde de­vassá-Ias e domina-las completamente. Não é de estranhar, pois, que muito haja ainda que respigar, que corrigir e que completar. 

Nas ciências do homem, mais ainda do que nas ciências do cosmo, devemos, como; aconselhava Augusto Comte, re­nunciar à quimera da verdade imutável, não encarando a ver­dade de hoje como definitiva, nem a de ontem como absoluta­mente falsa. 

A Sociologia e a Moral, assim como todas as demais ci­ências, dizia ainda o filósofo, devem ser concebidas como nas­centes e, portanto, como suscetíveis, quase indefinidamente de largos e variados progressos. 

Quaisquer porém, que sejam as luzes que o futuro proje­te sobre o angustiante problema da criminalidade, acredito que subsistirá, incólume, o princípio de que a ação penal deve ser exercida com a intenção exclusiva e o propósito único de pre­servar a ordem e o progresso da Humanidade.

 

 

Para conhecerem algo sobre as Ciências Sociologia e Moral Positivas 


 

 

 

 

 

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