Ives Gandra da Silva Martins começou a advogar em 1958. Nos 65 anos que se passaram desde então, sua carreira experimentou uma série de transformações, assim como o país. E, segundo ele, a principal diferença entre a advocacia do meio do século passado para a da década de 2020 é que, antes, o Supremo Tribunal Federal limitava-se a interpretar o Direito, enquanto hoje a corte também legisla, interferindo nas funções do Executivo e do Legislativo.
"No momento em que o Judiciário entende que pode exercer atos do Legislativo ou corrigir os rumos do Executivo, passa a ser um terceiro poder político. Porém, seus membros não são eleitos pelo povo, diferentemente do que ocorre no Executivo e no Legislativo. Isso traz insegurança política e indiscutivelmente dificulta o exercício da advocacia", avalia Ives Gandra.
Em dezembro de 2021, ele transferiu o comando de seu escritório, a Advocacia Gandra Martins, para seu filho Rogério Gandra Martins. Ives Gandra, atualmente com 88 anos, tomou a decisão de deixar o dia a dia da banca após a morte de sua mulher, Ruth Vidal da Silva Martins, e devido à sua atuação em conselhos profissionais e culturais. Porém, ele continua como consultor da firma, elaborando pareceres e auxiliando o filho em casos complexos.
Ives Gandra começou a carreira na área trabalhista, mas ganhou notoriedade como tributarista e constitucionalista. Ele foi o responsável por diversos precedentes importantes do STF, e talvez o mais precioso deles tenha sido o caso em que o Supremo reconheceu o princípio da anualidade tributária — que seria posteriormente incluído na Constituição Federal de 1967.
Contudo, o advogado também teve derrotas marcantes. Entre elas, a decisão do STF de permitir pesquisas com células-tronco. Segundo Ives Gandra, o passar dos anos mostrou que ele estava certo. Afinal, tal método não gerou resultados expressivos até hoje, diz ele. E o médico japonês Shinya Yamanaka, citado pelo advogado na sustentação oral no Supremo, foi condecorado com o prêmio Nobel de Medicina de 2012 por desenvolver uma técnica que consegue resultados semelhantes aos das células-tronco, mas com menos efeitos colaterais e sem envolver embriões humanos.
Ives Gandra sempre conciliou as carreiras de advogado e professor universitário. Entre outras instituições, ele foi docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Ele é autor de mais de mil pareceres, 87 livros individuais e centenas em coautoria, incluindo obras com seis dos atuais dez ministros do STF.
Na primeira parte da entrevista concedida à revista eletrônica Consultor Jurídico (a segunda será publicada nesta quarta-feira, 3/5), Ives Gandra ainda lembrou os melhores professores de Direito que teve e contou como foi sua relação com a ditadura militar (1964-1985).
Leia a seguir a primeira parte da entrevista:
Além do falecimento da Ruth, tem o fator de que eu ainda tenho uma atuação na parte cultural, em conselhos. Sou da Academia Paulista de Letras, atuo no Conselho dos Notáveis da Escola do Comércio. Eu gosto dessas atividades, pois, por meio delas, pode-se dar uma contribuição extraprofissional.
Por outro lado, o meu filho Rogério Gandra Martins começou, desde o primeiro ano na São Francisco, a trabalhar comigo. Quando eu lhe passei o escritório, já fazia 34 anos que ele trabalhava comigo, conhecia o meu estilo de advocacia, escrevia livros comigo. Então eu me senti à vontade para passar o escritório para ele.
E ele está tocando muito bem o escritório, com um estilo novo, o estilo dele. Nós comunicamos os clientes, mas alguns deles nem perceberam a minha saída. Alguns vêm me procurar, eu digo que não sou mais dono do escritório, e eles se surpreendem. Isso é um sinal de que estão muito satisfeitos com a continuação do escritório. O fato de uma parte da equipe ter continuado com ele também contribui para isso. Enfim, o escritório está indo muito bem. E, quando o meu filho acha que precisa de mim como consultor, trabalhamos juntos, como já fazíamos no passado.
A primeira sustentação no Supremo Tribunal Federal foi em 1962 ou 1963. Era um caso muito importante, que discutia o princípio da anualidade, e no qual saímos vitoriosos. A decisão, por 6 a 5, demonstrou que prevalecia o princípio da anualidade no Brasil. Ou seja, o orçamento deveria ser aprovado até o dia 15 de novembro, e não se podia fazer qualquer coisa que aumentasse impostos até 31 de dezembro. A decisão do Supremo veio a provocar, na Constituição de 1967, a mudança para que prevalecesse o princípio da anterioridade, e não só o da anualidade.
O primeiro grande conflito foi com a questão do Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC) entre os estados, no Supremo. Outra questão foi quando discutimos uma tese da não incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). De acordo com a Constituição e com o Código Tributário Nacional, o IPI era um imposto que incidia fundamentalmente sobre os produtos. O ICMS substituiu o IVC. Agora, o cálculo por dentro do ICMS fazia uma operação estranha. Como calculava o produto por dentro, na prática, o IPI estava sendo de 18% sobre o que era tributo, e não sobre o produto que estava sendo vendido. Nós discutimos a tese de que o valor da operação deveria corresponder ao valor da mercadoria sobre a qual deveria incidir o IPI, não podendo o IPI incidir sobre o tributo a ser pago ao estado, ou seja, o ICMS.
Essa tese foi vencedora em alguns tribunais e com relação a certos setores da economia. Nesse caso no STF, nós estávamos representando a empresa Sudam de Cigarros. O IPI cobrado sobre cigarros, na época, 1969, correspondia a três vezes o valor do produto. Isso se devia a um erro técnico do governo militar. Por isso, as empresas de cigarro estavam correndo risco de falir e passaram a contestar judicialmente a dupla tributação.
O então ministro da Fazenda, Delfim Netto — que hoje é um bom amigo meu —, mandou prender os diretores da Sudam, com base em um decreto-lei que editou para estabelecer que o não recolhimento do IPI configurava apropriação indébita. Não só isso: Delfim Netto pediu o confisco dos bens dos advogados da Sudam — eu e meus sócios — e a abertura de um inquérito policial militar. Isso em pleno regime militar, após a edição do Ato Institucional 5 (que cassou parlamentares, instituiu a censura e suspendeu o Habeas Corpus nos casos de crimes políticos). O argumento utilizado por Delfim era de que, se a Receita Federal considerava apropriação indébita a prática da Sudam, os honorários pagos aos advogados e declarados ao Imposto de Renda só poderiam derivar dessa apropriação ilícita, sendo os advogados coniventes com a empresa.
Mas nós conseguimos a libertação dos diretores da Sudam após 48 horas, e a decisão foi mantida em segunda instância e no Supremo. E o então ministro da Justiça, Gama e Silva, que tinha sido meu professor na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mandou arquivar o inquérito.
Também defendi a inconstitucionalidade da lei que impunha a cobrança de contribuições sociais sobre a receita das empresas, e não só o faturamento. Essa lei tinha surgido sem embasamento constitucional. Ela tinha entrado em vigor 20 dias antes da emenda constitucional que acrescentava o termo "receita" ao artigo que falava das contribuições sociais. Então receitas não operacionais de empresas passaram a pagar contribuições sociais por força da emenda constitucional, mas elas já estavam sendo cobradas 20 dias antes por força dessa lei. Nós discutimos a constitucionalidade da lei, argumentando que aquilo que nasce inconstitucional não se constitucionaliza. Defendemos isso no Supremo e ganhamos.
Outro caso muito interessante foi o da alíquota zero que dava direito a crédito e que o STF alterou o seu entendimento. A Fazenda entrou com uma série de ações rescisórias após 2 anos para poder cobrar daquelas empresas que tinham trânsito em julgado em seus casos no passado, quando a jurisprudência era outra. Fomos ao Supremo Tribunal Federal e mostramos que as ações rescisórias propostas depois de dois anos não poderiam prevalecer.
Mas teve outros em que eu perdi. Um deles foi o processo em que o Supremo, por 6 votos a 5, permitiu as pesquisas com células-tronco embrionárias. Eu defendi que o ser humano é ser humano desde o zigoto, que qualquer pessoa, qualquer ministro do STF, foi zigoto e se tornou ser humano naquele momento. Então as células-tronco não podem ser utilizadas para curiosidade científica. E é curioso que até hoje isso não deu certo em nenhuma parte do mundo. Em minha sustentação oral, falei que um médico japonês tinha dado para as células adultas os mesmos efeitos pluripotentes que as células embrionárias têm, sem gerar rejeição ou tumores. E mostrei que não havia razão para fazer experimentos dessa maneira. Mas perdi. Alguns anos depois, esse médico (Shinya Yamanaka) ganhou o prêmio Nobel de Medicina. Eu estava certo, mesmo tendo perdido.
Na época do impeachment do presidente Fernando Collor, eu fiz dois pareceres sobre a matéria. A pedido do deputado Hélio Bicudo, demonstrei que a matéria deveria ser examinada pelo Congresso. Por solicitação do presidente Collor, apontei que tanto para o juízo de admissibilidade na Câmara dos Deputados como para o julgamento do mérito no Senado, havia necessidade de dois terços da casa legislativa a favor da medida. Por outro lado, Miguel Reale Jr. defendia a tese de que só para o julgamento no Senado os dois terços seriam necessários, enquanto para o juízo de admissibilidade bastaria maioria absoluta. Minha tese prevaleceu nos dois casos (Collor sofreu impeachment por decisão dos parlamentares, mas depois foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal. A corte não encontrou nexo causal para justificar sua condenação entre os fatos alegados e eventuais benefícios auferidos no governo).
Para o estado e a prefeitura de São Paulo, fiz diversos pareceres sobre questões tributárias. Eu tenho mais de mil pareceres escritos. Pareceres com 60, 70, 80 páginas. Eu publiquei em torno de 700 deles em revistas especializadas.
Também autuei muito para a Zona Franca de Manaus, sempre com resultados positivos na Suprema Corte. Para outras cidades e estados, eu aceito ser contratado por notória especialização. Não entro em concorrências, até porque não preciso. Eles sabem das minhas titulações. Se precisarem, me chamam.
Dos alunos é mais difícil lembrar. Eu dou aula desde 1959 e em universidades desde 1964; toda hora encontro alunos. É difícil lembrar, porque você dá aula para 20, 40, 50 alunos, e eles se lembram do professor, mas o professor não se lembra de todo mundo. Um de quem eu me lembro é o Fernando Facury Scaff, que é professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo. Foi meu aluno e fez uma carreira brilhante.
Agora, convivi e trabalhei com muitos mestres, muitos astros jurídicos. Escrevi diversos livros com ministros do STF, como Oscar Corrêa e Moreira Alves. Na atual composição do Supremo, eu tenho livros escritos com seis dos dez ministros.
A minha ruptura com o regime foi com o Ato Institucional nº 2. O movimento em 1964 foi para garantir a eleição, em 1965, de Juscelino Kubitschek ou de Carlos Lacerda, que eram os dois candidatos. O diretório de São Paulo do PL apoiava a candidatura de Carlos Lacerda. Quando veio o Ato Institucional nº 2, eliminando as eleições e extinguindo os partidos, inclusive o PL, eu rompi com o regime. Essa decisão me levou a nunca mais fazer política.
Eu sempre quis ser só advogado e professor universitário. Como presidente do PL em São Paulo, nunca aceitei nenhum cargo político. Quando assumi o comando do PL, a legenda tinha sido a de menor votação na cidade de São Paulo. Eu instituí um vestibular para selecionar quem iria se candidatar a cargos eletivos. Com isso, nossos candidatos sabiam falar bem na televisão, se expressar, pois tinham passado em um vestibular. Com isso, o PL obteve a terceira maior bancada de vereadores. A nossa bancada era a única que votava unida, porque todos os vereadores tinham feito um compromisso com o partido quando se lançaram candidatos de que sempre obedeceriam à minha presidência e a orientação do PL. Na prática, eu sempre gostei da análise política, da reflexão.
Há vários exemplos. Prisões de parlamentares, contrariando o artigo 53 da Constituição, prisões preventivas genéricas, sem a identificação das condutas dos acusados da invasão em Brasília (em 8 de janeiro). A criação de cotas, o casamento de pessoas do mesmo sexo — não que eu tenha qualquer preconceito, pois não tenho nenhum, mas eles criaram uma hipótese nova. O mesmo em relação ao aborto. Temos as regras de fidelidade partidária, que os parlamentares não quiseram, deixando cada partido definir o que queria fazer ou não. A possibilidade de o Supremo ter iniciativa em ações penais. Há uma série de mudanças.
Tudo isso demonstra que há uma nova corrente de pensamento, que começa a dominar, que prega que os ministros do STF podem intervir nas funções de outros órgãos. Eu venho de uma geração diferente. Penso que o Judiciário pode no máximo interpretar o Direito. Caso contrário, seria mais um poder político. E o Judiciário não é um poder político, é um poder de preservação do Direito. No momento em que o Judiciário entende que pode exercer atos do Legislativo ou corrigir os rumos do Executivo, passa a ser um terceiro poder político. Porém, seus membros não são eleitos pelo povo, diferentemente do que ocorre no Executivo e no Legislativo. Isso traz insegurança política e indiscutivelmente dificulta o exercício da advocacia.
*Texto atualizado às 23h46 do dia 2/5/2023 para correção de informações.
Pegando no seu texto “Tudo isso demonstra que há uma nova corrente de pensamento, que começa a dominar, que prega que os ministros do STF podem intervir nas funções de outros órgãos. Eu venho de uma geração diferente. Penso que o Judiciário pode no máximo interpretar o Direito*. Caso contrário, seria mais um poder político. E o Judiciário não é um poder político, é um poder de preservação do Direito**. No momento em que o Judiciário entende que pode exercer atos do Legislativo ou corrigir os rumos do Executivo, passa a ser um terceiro poder político. Porém, seus membros não são eleitos pelo povo, diferentemente do que ocorre no Executivo e no Legislativo. Isso traz insegurança política e indiscutivelmente dificulta o exercício da advocacia***”.
ReplyDeleteCom sua permissão vou comentar os asteriscos:
(*) Interpretar as Leis do Direito sob a conduta das Leis dos DEVERES (Individuais, Domésticos, Cíveis, Ocidental, Oriental e Planetário) - https://www.doutrinadahumanidade.com/leia_indice_moral.htm https://www.doutrinadahumanidade.com/livros/ciencia_moral_positiva_pierre_laffitte.pdf
Seria a função do STF
(**) do Poder Civil e Poder Militar, este último para resguardar a Pátria e a Nação Brasileira.
(***) e do Poder Militar
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ReplyDeleteTeremos que fazer uma EVOLUÇÃO REVOLUCIONÁRIA e implantar um Novo Regime Político, o SOCIETOCRÁTICO REPUBLICANO, para ser possível nos transformar em uma Grande Nação.
ReplyDeletehttps://www.facebook.com/watch/?v=730399452628929&ref=sharing
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