Prezados Compatriotas,
O jornal Monitor Mercantil, em 07/06/2017, publica artigo do ex-ministro Roberto Amaral com título “Constituinte para quem?”. O escritor, intelectual e político se mostra bastante cético quanto à possibilidade do Brasil rapidamente superar este momento de ditadura midiática e financista. Com seu sólido conhecimento de história, considera que as forças contrárias ao povo e à soberania nacional seriam majoritárias numa constituinte levando a “uma carta autoritária, reacionária, deslavadamente entreguista, antipovo e antinação”.
Sem desmerecer a análise do ex-ministro de Lula, gostaria de refletir com meus leitores sobre a formulação legislativa e sua efetividade.
O sociólogo Kurt Lewin escreveu: “as experiências referentes à memória e à pressão do grupo sobre o indivíduo mostram que o que existe como realidadepara o indivíduo encontra-se determinado, em grande medida, pelo que é socialmente aceito como real ....
Logo, a realidade não é absoluta. Ela difere de acordo com o grupo a que o indivíduo pertence.” Este texto está em Resolving social conflicts (NY Harper and Brothers, 1948) e uso a tradução de Pierre Bourdieu em “Systèmes d’enseignement et systèmes de pensé” (Revue Internacionale des Sciences Sociales, vol. XIX, 3, 1967).
Aceitando esta realidade relativa, vamos buscar a autoria das leis e, a partir daí, sua aplicabilidade.
Podemos, de modo simplificado, ver duas compreensões do direito, e, em consequência, das leis: aquela que asseguraria a livre expressão individual dos homens e aquela que busca a convivência harmoniosa dos cidadãos, conforme os valores da sociedade.
Uma concepção é denominada liberal, surgida no século XVIII, e hoje inspiradora dos modelos neoliberais de direito. Ela se funda no “direito natural”, aquele que seria inerente à natureza humana. Mas, sem entrar ainda na discussão, seria próprio da natureza humana a escravidão?, ou a segregação racial? ou religiosa? Todas estas formas de convivência foram legalmente estabelecidas.
Outra concepção já se encontra na distinção de Gaius (século III), ao definir que “cada povo institui para si o que é próprio da cidade”, indicando a concepção social do direito.
Mas, como afirma o jurista inglês Herbert L. Hart (1907/1992): “poucas questões relativas à sociedade foram postas com tanta persistência e respondidas por grandes pensadores de forma tão diversa, estranha ou mesmo contraditória, como a questão o que é o direito?”(O Conceito de Direito, em http://portalconservador.com/ livros/Herbert-Hart-O- Conceito-de-Direito.pdf).
Examinemos esta concepção social do direito, que nos abre uma dimensão no mínimo mais rica de percepções. Gustavo Zagrebelsky (Diritto per valori, principi o regole, Quaderni fiorentine per la storia del pensiero giuridico moderno, 31, 2002) vê as sociedades contemporâneas como complexas, “mesmo do ponto de vista dos postulados morais”.
Efetivamente, a reconquista do poder, no mundo capitalista, pela vertente financeira, que denomino banca, mas é igualmente conhecida como “nova ordem mundial” ou capitalismo financeiro internacional, trouxe um afrouxamento generalizado de padrões, não só de regulação operacional, mas de aceitação da especulação como forma legítima de remuneração ou de enriquecimento.
Aliando esta situação ao progresso das comunicações virtuais, onde as informações, sem quaisquer cuidados, nos invadem pelas redes virtuais, e-mails, facebook e outros meios, criamos uma inquietação, uma insegurança que se reflete nas próprias condições normativas e nos relacionamentos institucionais.
São conhecidas as ideias de Zygmunt Bauman (Modernidade Líquida), Anthony Giddens (As Consequências da Modernidade) e Ulrich Beck (Sociedade de Risco) sobre a incerteza que perpassa a sociedade neste século XXI. Sem pretender nomear à exaustão, alinho os produtos transgênicos, a engenharia genética, formas de energia poluidoras de aquíferos, além e, principalmente, as instáveis fortunas advindas dos valores mobiliários, derivativos, mercados futuro etc.
Ora, seria de esperar que uma carta magna trouxesse um mínimo de segurança àqueles por ela abrangidos. Mas não é o que nos ocorre.
Dois tópicos, apenas, servem para que não tenhamos na atual constituição uma resposta adequada ao Brasil de 2017.
Primeiro, a condição de sua elaboração. Em 1988, prevalecia na mídia e nos movimentos sociais a ideia de eliminar quaisquer resquícios do poder militar. Disto também se valia, ainda que com sucesso relativo, a banca na orientação neoliberal da constituição. Mas a tradição mais próxima do apelo popular era do desenvolvimento nacional. Ele insuflara os tenentistas de 1920, chegara ao poder com Getúlio Vargas, permanecera com Juscelino Kubitschek e com os governos militares após 1968 até Ernesto Geisel. É relevante entender que o Brasil Potência não se opunha ao Brasil Ocidental e Cristão. Sem poder garantir, valendo-me apenas de manifestações de Vargas, Juscelino, Geisel e mesmo, recentemente, de Lula, este desenvolvimento era pensado como parceiro dos Estados Unidos da América (EUA), embora não desejado pela elite estadunidense, pois via mais uma ameaça do que uma aliança com um país tão rico e populoso, no mesmo continente, e igualmente desenvolvido.
No Brasil, por outro lado, havia e ainda há forte presença do pensamento colonizado, em especial na poderosa presença política do ruralismo, da bancada do boi e do grão. É uma elite que se satisfaz, egoisticamente, como exportadora e exploradora de mão de obra. Estes são os antagonistas da industrialização, aliados da banca, mostrando quando nos é pesada a pedagogia colonial.
Segundo tópico, trata das emendas à Constituição de 1988 que, até onde pude computar, totalizam 101, das quais 44 diretamente dirigidas à economia e finança (www.planalto.gov.br).
Temos, por conseguinte, uma constituição defasada das questões hodiernas, na qual o povo não se identifica, e com tal quantidade e profundidade de emendas que já nem retrata os objetivos de 1988. Esta fragilidade, que é a própria fragilidade institucional, possibilita golpes ridículos e vergonhosos para nossa nacionalidade como foi o de 2016.
Há, ainda, uma questão muito mais complexa que precisa ser enfrentada pela sociedade brasileira: a do sistema jurídico que representa uma classe social. Em trabalho magistral, o Desembargador Osny Duarte Pereira mostrou em “Quem faz as leis no Brasil?” (Civilização Brasileira, RJ, 1962) que o latifúndio e interesses dos grandes capitais, especialmente estrangeiros, são os principais legisladores brasileiros. Se fosse vivo, e revisse seu livro, certamente daria destaque ao capitalismo financeiro, à banca. Deste modo, o camponês, o operário, os pobres em geral, além dos negros e das mulheres são os ausentes da proteção legal. E mais, quando se consegue passar uma lei favorável a estes despossuídos ou a quem não seja homem branco, o próprio sistema judiciário se encarrega de evitar o ganho do intruso.
Na minha experiência pessoal, vi, não poucas vezes, juízes, advogados, promotores que procuravam convencer o queixoso a desistir da demanda. Uma recorrente arma era a morosidade da justiça. Não creio que esta morosidade tenha razões unicamente administrativas; ela defende os interesses de quem tem a pagar, seja com valores seja com a privação da liberdade. E ainda, as elites podem se socorrer de um infindável rol de protelações absoluta e acintosamente cobertas pela lei.
Neste sistema excludente, que vigora real e legalmente na sociedade brasileira, o judiciário só poderia ser de um tipo de Poder: o poder sem voto, para evitar que o povo venha, de algum modo, nele interferir. E, como a incentivar a impossibilidade de qualquer deslize do modelo meritocrático, é o judiciário auto corrompido com os maiores salários do serviço público. Poderia o atilado leitor questionar que o provimento por mérito iguala a todos na carreira judiciária.
Perguntaria, em contrapartida: um jovem de classe média, que pode dispor de todo tempo para estudar, frequentar cinema, teatro, museus, audições musicais tem a mesma condição de uma criança pobre, que desde sua infância tem seu tempo tomado com o trabalho, vendendo nas esquinas, cuidando de carros nos estacionamentos, levando produtos para fregueses, e restando-lhe o tempo já cansado para estudar? E isto para não me alongar com os importantes estudos de Pierre Bourdieu sobre as distinções.
Talvez o conhecimento político do professor Roberto Amaral seja correto. Mas como então chegaremos a uma sociedade soberana e cidadã?
Em meu leigo pensar, precisamos desde agora, e já o estaremos fazendo com atraso, mostrar as incongruências das instituições brasileiras, a realidade destes poderes da República, e estarmos abertos às inovações exigidas pela dinâmica da sociedade e pelos recursos existentes, em especial os derivados da informação.
Constituinte o mais breve possível, com a participação de todos os segmentos sociais em suas efetivas proporções no País.
Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado
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