A
RESPONSABILIDADE
PENAL
À
LUZ DO POSITIVISMO.
De
Augusto Comte
Eng. - Luiz Hildebrando de B. Horta Barboza (25/08/1900 – 11/08/1973).
Convocado pelo eminente professor
Roberto Lyra para falar, nesta digna Faculdade de Direito da Universidade do Distrito Federal, sobre a interpretação positivista dos fenômenos
psicossociais da responsabilidade, do crime e da penalidade, sinto-me muito
honrado por vos ter como ouvintes. Não posso, porém, deixar de confessar-me
intimidado ante a complexidade do assunto que, evidentemente, transcende de
muito o campo bem mais singelo em que se desenvolvem as minhas atividades
profissionais.
A mentalidade culta, arejada e liberal
do professor Roberto Lyra, levou-o a convocar-me pela circunstância, talvez,
de haver eu sido educado num ambiente em que a Humanidade e os seus interesses
materiais, intelectuais e morais constituem os únicos objetivos da vida e
verdadeiros centros de convergência e estímulo para nossas atividades
quaisquer.
Preliminarmente, devo lembrar que o
Positivismo consubstância, em cada fase histórica, o conjunto dos esforços da
coletividade para bem interpretar as realidades, tendo em vista melhor adaptar
o mundo e o homem aos interesses supremos da Humanidade.
Não é, por isso, o Positivismo obra
revelada de um jato por determinado indivíduo, nem o resultado de devaneios
filosóficos mais ou menos fantasistas de um sonhador excepcional em busca de
soluções quiméricas para os problemas humanos, à moda de Platão, Morus,
Campanela e tantos outros pensadores, sem dúvida dignos de nosso respeito, não
obstante a inocuidade prática de seus esforços, mais poéticos do que cientificos.
"O dogma fundamental do
Positivismo, expõe Augusto Comte, deve ser concebido, não como o produto
instantâneo de uma inspiração geral, mas sim como o resultado progressivo de
uma imensa elaboração especial, que começou com o primeiro exercício da razão
humana e que apenas em nossos dias vem atingindo sua plenitude entre os seus
órgãos mais avançados" (Política Positiva, I, p. 24).
Baseado nas ciências, cujas leis
permitem prever os acontecimentos e planejar, de modo eficaz, as nossas
atividades modificadoras, o Positivismo constitui-se lentamente graças à
solidariedade, no espaço, e à continuidade, no tempo, das sucessivas gerações
humanas em busca de níveis sociais cada vez mais elevados de conforto, paz e
fraternidade.
Conquanto sempre superior aos seus
órgãos quaisquer, mesmo quando esses órgãos individuais são um Tales, um
Aristóteles, um Descartes ou um A. Comte, o Positivismo deve, sem dúvida, aos
gênios desse padrão, em cada etapa da evolução social, complementações
imprescindíveis, bem como a expressão sintética e eficiente dos resultados
acumulados até o momento em que viveram esses cérebros excepcionais.
Adquirindo, nas primeiras décadas do
século passado, extensão, profundidade e maturidade suficientes para proporcionar
à sociedade humana bases positivas à sua existência evolutiva, até então
envolta em concepções preponderantemente fictícias, o Positivismo teve, em
Augusto Comte, o seu melhor e mais completo intérprete, que por isso é
reverenciado como o seu fundador.
Pertencendo à linhagem dos
Aristóteles, Bacon, Descartes, Diderot e Condorcet, realizou A. Comte a
decisiva operação intelectual que o conjunto da evolução humana havia tornado
oportuna, necessária e mesmo inevitável: a completa substituição da filosofia
teológico-metafísica do passado pela filosofia positiva do futuro, segundo a
qual as concepções e as construções quaisquer evoluem e se aperfeiçoam à medida
que melhores dados experimentais e informações mais precisas são obtidas a
respeito do mundo exterior e do próprio homem.
Vem, assim, proclamar o Positivismo a
prioridade objetiva do mundo sobre o homem, cujas vidas vegetativa e mental são
alimentadas, estimuladas e reguladas pelo meio exterior. Ao mesmo tempo
assinala o Positivismo a preponderância subjetiva da Humanidade, como força
norteadora e como verdadeiro destino de todas as atividades humanas, tanto no
campo afetivo e mental, quanto no prático.
Essa descoberta da ciência social
explica porque o Positivismo é, do ponto de vista político, o socialismo
científico, sobrepondo a Humanidade aos interesses das Pátrias e os interesses
destas aos das famílias, que as integram.
Dentro deste quadro das realidades
sociológicas, devem, pois, desenvolver-se todas as atividades humanas para que
sejam úteis, construtivas e realmente orgânicas.
Compreende-se, portanto, desde logo,
que as concepções positivistas, a respeito da responsabilidade de cada
indivíduo pelos seus atos e atitudes quaisquer, devam ser elaboradas quer na
base dos fatores de natureza física, biológica, sociológica e psicológica, de
tais atos, quer tendo em vista as suas finalidades subjetivas, norteadas, em
última instância, pelos interesses da Humanidade.
O estudo científico do comportamento
dos animais, em geral, revela que só a maior complexidade orgânica e conseqüente
plasticidade adaptativa dos seres humanos às realidades exteriores
possibilitou ocupassem eles o ápice da escala zoológica.
Como os outros animais, os homens são
dotados de um conjunto de funções que Ihes facultam, através de sensibilidade
e da mobilidade, explorar, a cada instante, as condições vigentes no meio
exterior, que passam a modificar ou a ele se adaptarem.
A maior variedade e intensidade das
funções nervosas dos homens, principalmente as cerebrais, os habilita, mais do
que a qualquer outro animal, a elaborar, da ordem exterior e de si próprios,
imagens mais completas e mais próximas das realidades objetivas e, portanto,
os arma de meios mais eficazes para agir e progredir sob todos os aspectos.
A modificabilidade da conduta dos
seres humanos em função de condições novas que se Ihes deparam a todo momento
e, sobretudo, a capacidade que revelam de se utilizarem, para se decidirem
neste ou naquele sentido, das experiências, erros e êxitos anteriores, sejam
seus, sejam da sociedade de que participam, são na verdade, extraordinariamente
superiores às observáveis em todos os outros animais.
Essa maior adaptabilidade do
comportamento humano corresponde, também, as necessidades, desejos e interesses
mais complexos. Os instintos, inclinações ou sentimentos inatos e resultantes
de suas características psicobiológicas hereditárias estão na base e são a
origem de todas as suas atividades tanto intelectuais quanto práticas. Os
estados volitivos impelem o animal a pensar e a agir em proveito próprio, quer
para sobreviver - instinto de conservação -, quer para procriar - instinto
sexual -, ou ainda para destruir os empecilhos que obstam os seus objetivos, ou
para construir os meios apropriados a satisfaze-los.
As atividades correspondentes a esses
diversos tipos de impulsos interiores são denominadas egoístas, por visarem
exclusiva e diretamente os interesses do indivíduo. A ambição ou necessidade de
mando e domínio, geralmente conhecida pelo nome de orgulho, e também o desejo
vaidoso de ser admirado e aplaudido são manifestações superiores de psiquismo
do tipo egoísta.
Em determinadas espécies animais -
tais como formigas, abelhas, aves e, de modo preeminente, os homens - é observável
a coexistência, com as atividades egoístas, de atitudes outras, caracterizadas
pela abnegação ou desprendimento individual em benefício seja da prole, seja
da coletividade. Esse aspecto sui generis de comportamento, simultaneamente causa
e efeito da sociabilidade, é, hoje em dia, com Augusto Comte, denominado
altruísta. Os estados psíquicos correspondentes revelam, em nossa espécie,
três variedades conhecidas por apego, veneração e bondade.
Semelhante conjunto de funções
emocionais ou volitivas, reunido às funções intelectuais de julgamento e
deliberação e às de estímulo, inibição ou persistência na ação executiva (coragem,
prudência e firmeza), corresponde ao que primitivamente denominava-se alma e,
hoje, ao fenômeno que a ciência dos seres vivos demonstra resultar das
atividades fisiológicas do sistema nervoso e, em especial, do cérebro.
***
Os
interesses egoístas são a base enérgica e necessária da existência animal,
assim como os estímulos altruístas são os que possibilitam a constituição,
sobrevivência e progresso das sociedades.
Na espécie
humana, a par de outras notáveis características anatômicas e fisiológicas,
altamente vantajosas, manifestam-se, com energia superior, as funções
cerebrais da inteligência e do altruísmo que explicam o prevalecimento, sobre
a terra, de nossa sociedade, com exclusão e progressiva eliminação dos outros
animais, inclusive dos que possuem organizações comunitárias.
Os homens,
quando surgiram como tais, distintos dos antropóides, já viviam em sociedade.
Nesta, além, da necessária solidariedade que une os indivíduos de cada geração,
observa-se a continuidade histórica, responsável pela transmissão, de geração
a geração, dos frutos das atividades práticas, intelectuais e morais. Esta
última característica da sociedade humana explica o seu rápido progresso em
face da quase imobilidade das outras organizações animais, onde - como nas formigas,
abelhas, termitas -, se é fortíssima a solidariedade, étênue e praticamente
imperceptível a continuidade.
O trabalho
coletivo e conseqüente formação do capital quer prático, quer teórico, em
benefício de todos os integrantes do grupo, é a manifestação básica do fenômeno
social. Participando de uma sociedade, todo ser humano, a partir de certa idade
e desde que se encontre em condições normais de saúde e educação, é capaz, no
campo material, de produzir mais do que consome e, no campo dos conhecimentos,
de acrescer alguma nova descoberta àquelas que haja recebido, vale dizer, é
capaz de gerar trabalho social.
Os capitais
de natureza material, sob a forma de instrumentos e mantimentos ou provisões,
constituem verdadeiras reservas coletivas, disponíveis para o progresso e
melhoria sociais, permitindo, inclusive,
a solução progressiva do difíci problema de conciliar a vida biológica ou
egoísta com a vida sociológica ou altruísta.
Melhores
bases econômicas tornam possíveis os aperfeiçoamentos intelectual e moral da
espécie, fenômenos estes que consolidam os resultados alcançados e fornecem,
por sua vez condições para novos progressos materiais. “A ordem moral de toda
associação humana, diz Augusto Comte, repousa necessariamente sobre a sua
organização intelectual e esta sobre a sua constituição material." A
correlação e interdependência dessas três forças sociais, cada uma das quais é
a um tempo causa e efeito das outras duas, não permitem, porém, esquecer que,
objetivamente, os fenômenos superiores estão sempre subordinados aos mais
grosseiros. Deste modo, os fenômenos psicossociais da moralidade e da
intelectualidade necessitam, para se produzirem, de um conjunto de condições
mínimas propiciadas forçosamente pela materialidade.
***
Dentro do
quadro das realidades objetivas, independentes de nossa vontade, conquanto
muitas vezes modificáveis por nós, na medida que Ihes descubramos as leis
efetivas, devemos analisar a tese que nos cabe desenvolver, guiados pelo
princípio subjetivo de que quaisquer esforços nossos devem ter em vista servir
aos interesses superiores da Humanidade.
Os conceitos
de bem e de mal, de justo e injusto, de moral e imoral, de conveniente e
inconveniente, terão de ser definidos em relação aos fins (objetivos) e aos
interesses humanos de conforto, paz e fraternidade. Esses ideais, verdadeiros
limites longínquos, mas não quiméricos, de todos os nossos anseios de ordem e
progresso, coordenarão, cada vez mais, a indústria, as ciências, as artes, a
po!ítica, a educação, vale dizer, toda a vida humana, individual e coletiva.
Evidentemente
a teoria estará sempre subordinada à prática, o abstrato ao concreto, o
subjetivo ao objetivo, e só assim será possível evitar concepções fictícias,
ineficazes para guiarem a nossa atividade modificadora do mundo e do próprio
homem em proveito da Humanidade.
Estas
premissas vão permitir-nos esboçar as concepções próprias ao espírito positivo
relativamente à responsabilidade penal. Primeiro procuremos esclarecer os
conceitos de liberdade, de consciência e de responsabilidade para, em seguida,
definir o crime e a reação defensiva ou preventiva da sociedade.
* *
A luz do
Positivismo, a liberdade de cada qual fazer o que quer existe na medida em que
a Humanidade descobre as leis naturais que regem o mundo e o homem,
possibilitando, de modo crescente, o domínio e a utilização dos fenômenos
correspondentes. O desenvolvimento das ciências cosmológicas e antropológicas
e a obediência às suas leis são a única fonte e o único limite da liberdade
humana. "Nossa inteligência, ensinava A. Comte, manifesta sua maior
liberdade quando se torna, segundo seu destino normal, um espelho fiel da ordem
exterior." "Assim, a verdadeira liberdade é por toda parte inerente
e subordinada à ordem, quer humana, quer exterior."
"Longe
de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, acrescentava ele, a
liberdade consiste, por toda parte, em seguir, sem obstáculos, as leis
peculiares a cada caso"
O empirismo
popular, aliás, já afirmava, de longa data, que saber é poder. Também Engels
dizia, decênios depois de A. Comte, que "a liberdade consiste no domínio
sobre nós mesmos e sobre o mundo exterior, fundada sobre o conhecimento das
leis características da natureza: ela é, deste modo, necessariamente um
produto da evolução histórica".
O poder ou a
liberdade de que dispomos para modificar e adaptar aos nossos interesses
quaisquer fenômenos, como, por exemplo, o comprimento das elipses, a área ou o
volume das esferas, a velocidade, a direção ou a energia dos corpos em movimento,
ou ainda, a temperatura e dilatação deles, a direção e intensidade dos raios
luminosos, a composição das substâncias, etc., depende de conhecermos as leis
correspondentes, que tornam exeqüível nossa ativa interferência em todos
eles. Desses conhecimentos deriva a indústria moderna, que já conseguiu ir da
locomotiva a vapor à televisão colorida e à desintegração do átomo.( É pena que ele, não
tenha tido tempo de conhecer tanto avanço científico;mas nos deixou muitas
explicações científicas fabulosas)
Também no
campo dos acontecimentos biológicos, a antiga impotência e cega submissão dos
homens aos azares das moléstias e epidemias imprevisíveis e incontroláveis vêm
sendo substituídas por sua progressiva libertação, graças ao poder que
adquirem de intervir e modificar tais fenômenos, alterando ou anulando as suas
manifestações desfavoráveis.
O mesmo
poder-se-á dizer a respeito das liberdades social e moral, que eram diminutas
e mui restritas nas cabildas e tribos dos tempos idos, onde bem poucos tipos
diferentes de comportamento podiam ser escolhidos e adotados pelos indivíduos.
A liberdade dos homens, nesses tempos primitivos, pouco diferia da dos
mamíferos superiores, em que pesem os estados de felicidade e liberdade
idílicas, imaginados por J. J. Rousseau como tendo existido antes de se haverem
os homens jungido à canga representada pelas exigências da vida social.
"Os primeiros homens que se
diferenciaram do reino animal, concorda Engels, eram, sob todos os aspectos
essenciais, tão pouco livres quanto os próprios animais; mas todo progresso no
sentido da civilização foi um passo para a liberdade."
A liberdade não é, pois, um dom do
céu, mas uma conquista social, o fruto de um longo esforço da coletividade
humana para superar a animalidade primitiva que a limitava e dominava.
***
De qualquer
modo é preciso ter em vista que são esses conhecimentos práticos e teóricos a
respeito do mundo e do homem, inicialmente precários, insuficientes e, em larga
margem, supridos e completados por ficções fantasiosas (adequadas, porém, à
justificação e à proteção das instituições sociais vigentes), que participam
da formação da consciência de cada indivíduo, condicionando-Ihes a vontade.
A
consciência, com efeito, ao contrário de ser um estado in"ato do psiquismo
humano, uma voz interior que aponta o bem e condena o mal, não sujeita a
influências modificadoras quaisquer, é - também ela - lentamente
formada e continuamente alterada pela ação do meio exterior, tanto físico
quanto social.
Antes da extensão
da positividade às ciências do homem individual e coletivo, "a
consciência não podia ser nitidamente te apreciada, afirma A. Comte, por falta
de se conceber o estímulo simpático que, suficientemente assistido pela
inteligência, controla as inspirações viciosas. Mas a sua teoria positiva
permitirá aplicá-Ia melhor, invocando de modo adequado cada um dos seus dois
elementos, igualmente cultivados, mediante a educação universal" (Política Positiva,
IV, p. 334).
Resultando
de complexíssimo conjunto de atividades do cérebro, a consciência reflete e
combina, em cada circunstância, os instintos, inclinações emotivas, aptidões
intelectuais e tendências práticas de que o indivíduo é dotado hereditariamente,
com as experiências, erros e êxitos de toda natureza, quer passadas, quer
presentes, provenientes de suas relações com o meio cósmico e social.
Nos estados
volitivos, intervém a consciência com todo
o
peso dos seus antecedentes biológicos e psicossociais, para induzir o indivíduo
a deliberações de que resultam as suas atividades. O comportamento adotado será
classificado como normal, se convergente e harmônico com os interesses da sociedade,
e anormal, no caso contrário.
Se o homem
age contrariando a sua consciência, sobre virá, em geral, um estado psíquico
denominado remorso, que é a expressão da auto-reprovação e do pesar por ter
agido mal. Se não há remorso, o indivíduo será considerado inconsciente ou
excessivamente egoísta.
Para Henri
Roger, "a consciência é a mais importante faculdade do cérebro, porque
explica e assegura a personalidade humana e nos dá a dupla sensação da
liberdade e da espontaneidade; ela faz surgir deste modo um sentimento novo, o
sentimento da responsabilidade, que conduz à satisfação e ao orgulho de si
próprio ou, ao contrário, à humildade, ao arrependimento e ao remorso".
Mas
a vontade é instável. sofrendo a influência modificadora de numerosos fatores.
Não é a mesma dia após dia, podendo, inclusive, sofrer, em condições
especiais, variações bruscas e de grande intensidade.
Há,
portanto, margem e fundamento para a concepção, que domina a escola
antropológica ou positiva, de que a liberdade da vontade é mera impressão
subjetiva, sem realidade concreta.
Pondo de
lado, apesar de sua real importância, a herança biológica ou genotípica a que
está condicionada a personalidade básica do indivíduo, devemos sublinhar as
condições físicas, bio-econômicas e educacionais, criadas pela sociedade e
subordinadas às quais nascem, crescem e morrem os seus elementos componentes.
É, porém, a
educação propriamente dita, vale dizer, a assimilação pelo indivíduo dos
recursos teóricos, estéticos e práticos da respectiva sociedade e também dos
seus hábitos morais, tradições e costumes, o que mais pesa para o tipo de
comportamento que finalmente será por ele adotado.
A influência
preponderante do meio social, para a formação do indivíduo e de seu psiquismo,
é tão inconteste, quanto a importância do êxito dessa operação para a vida da
própria comunidade. Mesmo não se levando em conta a crescente
responsabilidade da sociedade relativamente às taras hereditárias, cuja
melhoria ou eliminação já lhe estiver ao alcance, mediante processos
eugênicos, cabe-lhe, sem dúvida, o dever de proporcionar e até, em certos
casos, impor a cada um de seus elementos, na medida dos recursos disponíveis,
todos os processos econômicos, intelectuais e morais adequados à boa formação
da respectiva personalidade.
A eficiência
dessa tarefa social varia muito, não só em função da receptividade constitucional
ou hereditária de cada indivíduo, como também em função dos meios efetivamente
aplicados.
Evidentemente,
a capacidade e os recursos disciplinadores das sociedades foram mínimos e
grosseiros nos tempos remotos, avultando lentamente com o progresso geral. Também
reduzidos eram os hábitos e costumes inculcáveis a cada componente das
singelas sociedades de então.
A ação
educadora, espontânea ou sistemática, realiza-se, nas crianças, mediante a
situação natural em que elas se encontram de submissão involuntária aos pais e
aos mais velhos em geral. A tendência inata a imitar e identificar-se, mental e
praticamente, com o meio em que se vive, adotando as idéias e atitudes
preponderantes naqueles com os quais se coabita
A educação
sistemática juntamente com a educação espontânea, resultante da vida
quotidiana num determinado meio social, são as principais formadoras da
consciência.
"Do
ponto de vista sociológico, diz Marx Nordau, a moral é um laço que liga os
indivíduos à sua comunidade, único fundamento sobre o qual a sociedade pode
nascer e se manter. Porque ela é a vitória sobre o egoísmo e significa a
simpatia pelo próximo, o reconhecimento de seus direitos, a solidariedade com
ele, mesmo no caso em que haja necessidade de uma possível renúncia às vantagens
de que se dispõe e o abandono doloroso de satisfações que se poderiam alcançar."
A moral é, portanto, a condição a que se devem
submeter os indivíduos para continuarem a participar da vida social. Sem a
sociedade o homem não pode subsistir mas, por outro lado, a sociedade não pode
sobreviver sem a moral.
***
Dentre a
imensa gama de regras morais, destacam-se umas tantas de valor imperativo.
Constituem elas um conjunto de normas de abstenção, um mínimo de abnegação e de
contenção egoística, em favor da coletividade e que esta impõe a todos os seus
integrantes.
No entanto,
nem sempre consegue a sociedade, de todos os seus membros, suficiente unidade e
convergência de sentimentos, de concepções e de atitudes práticas. Haverá
sempre uma dispersão de resultados. Em geral, a maioria é assimilada
razoavelmente. Duas pequenas minorias extremas ficam além ou aquém da média.
Uma supera a moral vigente, apresentando-se, nos casos de sublimação,
verdadeiramente revolucionária, pioneira, com freqüência incompreendida e,
inclusive, repelida. A segunda minoria fica abaixo dessa moral básica, não a.
respeitando nem mesmo naquilo que ela tem de mais grosseiro e indispensável à
preservação da vida social.
Os
indivíduos deste último tipo, transgressores da moral consubstanciada nas Ieis
penais, são os criminosos propriamente ditos, excluindo-se, porém, os idiotas,
os alienados, os loucos e os de menor idade, cuja
irresponsabilidade é reconhecida nas civilizações mais evoluídas, como
decorrência de radical incapacidade psíquica, seja congênita ou adquirida,
seja: ainda por não se haver completado o desenvolvimento orgânico.
As ações e
reações da sociedade assumem, nos casos de crime, a forma de repressão penal,
fenômeno espontâneo, ligado ao instinto coletivo de conservação. Reação
dolorosa, mas inevitável, sob pena de desorganização, dissolução e perecimento.
Assim como a liberdade é uma
decorrência da ciência e da
técnica propiciadas pela sociedade, também a responsabilidade só faz sentido
como fenômeno social ou em relação à sociedade.
O homem
isolado, nascido e crescido fora de qualquer comunidade - hipótese
sabidamente inverificável -, não teria a menor liberdade em relação
à natureza a que teria de subordinar-se cegamente, sem qualquer capacidade
para modificá-Ia. Também não teria nenhuma responsabilidade, nem deveres, nem
direitos.
Mas que responsabilidade tem o
delinqüente?
A chamada
escola clássica, baseada em Beccaria, de tradição católica, responde afirmando
a inteira responsabilidade do delinqüente, como resultado do livre arbítrio
inerente à alma humana, esclarecendo Bossuet que o homem é moralmente livre,
porque pode dispor de seus atos sem motivos outros além dos que resultam de
sua vontade.
Firmados nos
mesmos livros sagrados, Lutero, Calvino e reformadores outros, cregam à
predestinação absoluta, por considerarem todos os atos humanos, mesmo os mais
insignificantes, predeterminados de toda eternidade, porquanto já sabidos e
decididos pela onisciência e onipotência de Deus, para quem, não havendo tempo,
nem empecilhos, tudo é presente e tudo é possível.
A escola
italiana, chamada antropológica ou positiva originada dos trabalhos de
Lombroso e Ferri, inspirada em Broca, Gall e, principalmente, no espírito
científico, então estendido à sociologia e à psicologia por Augusto Comte,
responde negando o livre arbitrio, isto é, a vontade incondicionada que
considera mera ilusão subjetiva.
A conclusão
dessa célebre escola penal coincide com a de Calvino, conquanto inteiramente diversos
os motivos. O fatalismo calvinista decorria dos atributos de Deus. O determinismo
absoluto da escola antropológica resultou de uma insuficiente compreensão das
leis naturais, isto é, da real coexistência física da imutabilidade e da
modificabilidade em todos os fenômenos naturais.
***
Só a teoria
positivista do conhecimento, isto é, só a epistemologia exposta por Augusto
Comte no conjunto de sua obra filosófica, fornece a chave do problema,
mostrando como se harmonizam a imutabilidade fundamental das relações de interdependência
dos fenômenos uns com os outros com a modificabilidade praticamente infinita
de todos os acontecimentos naturais que ocorrem no universo. O necessário e o
contingente, a fixidez e a variabilidade, coexistem na realidade objetiva dos
seres e das coisas cósmicas e humanas.
A lei mater
que domina toda a positividade científica, e que foi enunciada pelo grande
pensador, é aquela segundo a qual tudo quanto o nosso entendimento concebe ou
imagina, com o objetivo de bem representar as realidades, corresponde a
hipóteses ou suposições construídas mediante o que é obtido do exterior por
intermédio dos sentidos (8 SENTIDOS) .
Essas
hipóteses, gradativamente, à medida que se acumulam novos dados experimentais
a respeito dos fenômenos ou acontecimentos a que se referem, evoluem,
modificam-se e se tornam cada vez mais próximas da realidade.
Outro
princípio universal ligado a este assunto resulta de uma indução baseada em
milenar e incessante experiência, que nunca deixou de confirmar a existência de
leis imutáveis, independentes de vontades arbitrárias, regendo os fenômenos,
conquanto a formulação dessas leis só se torne possível mediante o uso da
abstração. ( Vide Teoria da Abstração segundo
Augusto Comte)
Nem o mundo
nem os homens são estáticos, inertes. Pelo contrário, há neles constantes
atividades que acarretam contínuas ações e reações, dando lugar a incessantes
modificações. Caso não houvessem, entre os fenômenos, leis ou relações
necessárias de interdependência de causa e efeito, ligando e encadeando, de
modo imutável, os sucessivos acontecimentos, teríamos um verdadeiro caos, onde
tudo seria incerto, imprevisível, indeciso e fortuito.
Aos
homens seria então impossível outra atitude que não a de cruzarem, impotentes,
os braços.
A lei, como
a expressão da constância que se consegue descobrir no seio das variações,
aparentemente desordenadas, das atividades ou fenômenos da natureza,
estende-se a tudo e a todos, mesmo àqueles setores da ordem cósmica e antropológica
ainda não pesquisados. A convicção indutiva, assim adquirida, da imutabilidade
das leis científicas, como que subordina os acontecimentos quaisquer a um
determinismo inflexível, a um fatalismo inexorável, ante o qual, como no caso
anterior do indeterminismo absoluto, os homens teriam também de cruzar os
braços, por nada poderem fazer.
Um outro
princípio universal corrige esse engano, mostrando-nos que é possível
interferir, dentro de certos limites, na maioria dos acontecimentos reais. O
que é imutável é o modo segundo o qual as variações de um dado fenômeno estão
ligadas às de outros que com ele concorrem um acontecimento qualquer. A
modificabilidade restringe-se, em todos os casos, à intensidade dos fenômenos,
sem perturbar a correlação de interdependência quantitativa, que subsiste
inalterável. Nem o fatalismo determinista absoluto, nem o livre arbítrio
indeterminista, também absoluto, são, portanto, noções positivas, não
correspondendo às observações e às experiências reais da ordem cósmica e
humana.
A
modificabilidade, porém, será tanto maior e mais variada quanto mais complexo
for o acontecimento, isto é, quanto maior o número de fatores que intervêm na
sua produção.
Daí a
extrema variabilidade dos acontecimentos superiores: biológicos, sociológicos e
principalmente morais. Os fenômenos dessa natureza estão subordinados a tão
grande número de modificadores, que as suas manifestações assumem, por vezes,
aspectos de acidentais e contingentes.
Na prática,
contudo, a variabilidade quantitativa dos fenômenos não é sem limites, isto é,
não se verifica para qualquer intensidade. Enquanto ela se mantém dentro de
certos graus, a natureza propriamente dita do acontecimento não se modificará.
Se, no entanto, a intensidade dos elementos condicionadores ultrapassar
àqueles limites, poderá sobrevir profunda transformação na natureza do
fenômeno em causa. As variações de temperatura, por exemplo, acarretam
alterações diversas num bloco de gelo ou numa folha de papel. Dentro de certos
valores dessa variação térmica, o gelo continuará gelo e o papel não deixará de
ser papel. Subindo, porém, a temperatura além desses limites, o gelo
liquifar-se-á e o papel se carbonizará. As variações de quantidade ou de intensidade
podem, portanto, produzir modificações qualitativas.
Do ponto de
vista objetivo, todos os fenômenos ou acontecimentos são naturais e normais em
qualquer grau que se apresentem. Já subjetivamente, levando-se em conta as conveniências
humanas, haverá, em cada caso, intensidades mais vantajosas e mais favoráveis
do que outras. Esse critério, exclusivamente subjetivo, levou à introdução das
noções de estados normais e anormais.
Em biologia,
as atividades orgânicas, além de certa intensidade, são classificadas como
patológicas.
Do mesmo modo,
o justo e o injusto, o moral e o imoral, a virtude e o crime, etc., são todos
igualmente fenômenos psicossociológicos, que diferem apenas pelo grau de
afastamento ou de coincidência com os tipos normais instituídos, em cada época,
na conformidade dos interesses da civilização vigente.
*
* *
Mediante estes rápidos esclarecimentos, talvez se
torne possível compreender as concepções que, a propósito dos delinqüentes e
da responsabilidade penal, esboçaram Augusto Comte e os seus discípulos mais
próximos e fiéis.
Direta e
especificamente, o grande filósofo apenas abordou, a respeito, algumas
considerações gerais ao longo do desenvolvimento de suas teorias sociológicas e
morais.
Devemos
recordar, antes de mais nada, que Augusto Comte analisou e condenou, como já
historicamente superado, o velho direito, correspondente à civilização
teológico-militar. Mostrou ele, então, que a nova civilização
pacífico-industrial substituirá, progressivamente, o fictício
direito individualista pelo direito socialista,
decorrente dos deveres de todos para com todos.
O direito, à luz do Positivismo, representa,
portanto, aquilo que cada um pode exigir dos outros, para assegurar-se das
condições indispensáveis ao cumprimento de seus deveres domésticos, cívicos e
universais.
O
direito civil e o criminal são, deste modo, as regras e os processos mediante
os quais são garantidos ou impostos pela sociedade, a cada um de seus
integrantes, os meios e as condições para o bom cumprimento dos respectivos
deveres (sociais).
De acordo
com tal concepção, os direitos que antigamente se arrogavam os governos, quer
temporais, quer espirituais, de castigar os culposos, substitui Augusto Comte o
dever que Ihes incumbe de prevenir todas as tendências dissolventes da
sociedade, mediante os recursos econômicos, intelectuais e morais de que
dispõem, bem como o de reprimir e corrigir os delinqüentes, reparando, tanto
quanto possível, os malefícios ocasionados.
Os governos
espirituais -
padres,
médicos, advogados, jornalistas, filósofos, poetas, cientistas e literatos - deverão
empregar os recursos intelectuais e morais, convencendo, persuadindo, educando
e, por fim, apelando para as sanções da opinião pública. Os governos temporais,
dirigindo ou reprimindo os atos práticos, aplicam os meios materiais, principalmente os econômicos e, em
última instância, a compulsão física da força policial.
Para
documentar os ensinamentos do fundador do Positivismo, julgamos oportuno
traduzir, livremente, os seguintes trechos característicos de sua Política Positiva.
"Conquanto
nossa existência não possa ser regulada sem o concurso dos dois poderes
governamentais -
temporal
e espiritual -,
esse
encargo cabe principalmente às forças espirituais. Exercendo, em nome da
Humanidade, os poderes de repressão e de direção, resultantes da educação, o
poder espiritual disciplina as vontades, individuais ou coletivas, invocando
primeiro os sentimentos, depois a razão e por fim a opinião pública. Devendo
ter império exclusivamente sobre os atos, isto é, sobre o comportamento prático
dos indivíduos, o governo temporal pode unicamente completar a disciplina moral,
instituindo, para os casos mais grosseiros e mais urgentes, uma força
preventiva ou corretiva. Esse complemento material e copulsório, porém, sem que
nunca possa desaparecer, deve reduzir-se progressivamente, à medida que a
civilização desenvolve e aprimora a formação moral e intelectual do povo,
crescendo o poder irresistível da opinião pública" (Política Positiva,
IV, pp. 279/280).
"A
necessidade de recorrer à repressão física, continua Augusto Comte, revela as
falhas da constitução social. Conquanto esse
recurso extremo deva tornar-se cada vez mais excepcional, não cairá jamais em
desuso total, por isso que existirão sempre personalidades
viciosas, das quais a Humanidade deverá preservar-se, sem poder esperar
corrigi-Ias completamente. Gall observou sabiameme, a esse respeito, que a
total abolição da pena de morte, sonhada por uma vaga filantropia, seria
diretamente contrária às leis positivas de nossa natureza individual. Ouso
acrescentar que ela feriria ainda mais as que são próprias ao organismo
coletivo. Contudo, esse
derradeiro recurso da Humanidade contra as depravações radicais deve
certamente tornar-se cada vez mais excepcional, sob a influência de uma
adequada educação universal e duma sábia sistematização da
vida social"
(Política Positiva,
11, p. 419).
Como
curiosidade, devo acrescentar que não admitia A. Comte fosse imposto aos
criminosos, como castigo, o trabalho. Segundo o positivismo, é o trabalho uma
das mais elevadas manifestações do altruísmo. "O positivismo, esclarece o
filósofo, fará apreciar a verdadeira dignidade do trabalho, que a teologia
havia representado como resultado de uma maldição divina. Quando for aplicado
ao regime de correção, o positivismo converterá a
ociosidade forçada numa das mais terríveis punições" (Política Positiva,
11, p. 415).
Dos
discípulos europeus de A. Comte, quem, com maiores estudos, desenvolveu e
detalhou as suas concepções a propósito do problema que vimos focalizando, foi
P. Dubuisson, cuja obra saiu publicada em 1911, sob o título Responsabitité Penale et Folie-Étude
Médico-Legale.
Num dos trechos característicos daquela obra,
lê-se: "A doutrina de A. Comte serviu de base a todos os capítulos deste
trabalho; expomos uma teoria positiva da responsabilidade e tentamos dar uma
teoria positiva da loucura."
"A
sociedade, continua o autor, não pune com o objetivo de expiação, nem para
estabelecer compensações entre as faltas e os castigos; ela pune para se defender, para intimidar o culpado e também
para emendá-Io. Nas perícias médico-legais, não
se pode, pois, cuidar de responsabilidade moral, mas de responsabilidade socia!."
"Prevalecendo
a doutrina da preeminência dos direitos da sociedade sobre os do indivíduo,
conclui-se que, mesmo quando, do ponto de vista moral, para um mesmo delito, o
indivíduo mal nascido, mal educado e sob exaltação passional, é julgado menos
culpado do que o indivíduo sadio, bem educado e ponderado, do ponto de vista
social, é o segundo quem deve sofrer a pena mais severa, porquanto, para ser
intimidado, ele necessita de um castigo mais duro."
"De um
modo geral, não existem no mundo dois delinqüentes com responsabilidades
iguais, por isso que não existem no mundo dois homens que sejam exatamente
idênticos. Tudo na vida, da nascença à morte, tende a diferençá-Ios: desde a
constituição cerebral hereditária, até as disposições, aptidões, educação,
meio, hábitos, moléstias anteriores, estado físico no momento do crime,
circunstâncias especiais, conselhos, necessidades e outras tantas
particularidades que ocasionam diversidades."
Desse
quadro, conclui Dubuisson que a penalidade na base da responsabilidade moral,
conduz a uma dificuldade insuperável: a necessidade de apurar o grau de
imputabilidade de cada criminoso. "Quem não vê, diz ele, a dificuldade de
se estabelecer a equação moral de um indivíduo? A outra conseqüência seria
que aos criminosos mais perigosos caberiam penalidades mais suaves e até mesmo
a absolvição, porque seriam os menos responsáveis moralmente e menos capazes
de compreenderem o valor moral de seus atos e os mesmos resistentes aos choques
das paixões”.
Depois
de segura argumentação, defende Dubuisson o princípio positivista do interesse
social, como a única base legítima para uma teoria penal capaz de reprimir, sem
exageros e poupar, sem debilidade: "O interesse social, acrescenta ele,
quer que se pese o criminoso mais do que o crime e que nos preocupemos mais com
o perigo que o homem representa para a sociedade do que com o ato por ele
cometido. Esse princípio procura emendar, erguer o criminoso, e admite que se
levem em consideração as circunstâncias e os móveis e que não se trate o
assassino por questão de honra em pé de igualdade com o que é por interesse. Precisamente porque a sociedade não julga para vingar-se,
mas simplesmente para se preservar, pode ela ser clemente, não conhecendo
outro limite, para sua indulgência, além do que exige a sua segurança."
"O
princípio de que sem responsabilidade moral não poderá haver penalidade
conduziria, cedo ou tarde, mas fatal e logicamente, à absolvição dê todos os
delinqüentes, como moralmente irresponsáveis, salvo se Ihes desse lugar, na
qualidade de doentes, nos asilos de alienados."
Resumindo:
Dubuisson defende a existência da responsabilidade social do delinqüente
intimidável, porque o homem mais pervertido, desde que sua inteligência seja
suficiente e que o processo de intimidação seja assaz enérgico, pode resistir
aos seus maus pendores, derrotar o seu egoísmo, superar a fatalidade decorrente
de sua organização. Para ele, num dado momento o indivíduo se revela incapaz
de bastar-se a si próprio. Os seus sentimentos
altruístas mostram-se impotentes. A cupidez, a sexualidade e o instinto destruidor o dominam.
A inteligência, em face da intimidação penal, mostra-lhe, porém, as
conseqüências danosas e nocivas, para ele próprio, que sobreviverão de suas
atitudes egoístas e criminosas. A ameaça de morte, outra coisa não seria, em
suma, senão o mais enérgico dos processos de intimidação, isto é, de ação
modificadora da sociedade, cuja série inicia-se modestamente com o medo do que dirão?
A
intimidação é um fenômeno psíquico-social e nada tem a ver com a
responsabilidade moral absoluta. A sociedade cabe aplicar processos
inibitórios, tanto mais enérgicos quanto maior for a dificuldade revelada pelo
indivíduo para se conter e vencer os seus impulsos criminosos. Falhando esses meios repressivos, o delinqüente não é
propriamente um responsável, mas um doente do cérebro, um demente enfim.
Quaisquer que sejam as dificuldades e as dúvidas
que se possam levantar contra essa concepção, o principal é que Dubuisson
conclui no sentido do princípio da responsabilidade social do delinqüente e do
dever que cabe à comunidade de se defender, sem qualquer intuito de estabelecer
equivalência entre os crimes e os castigos.
No pequeno
trabalho que redigiu em 1894 sob o título O Regime Republicano e o Novo
Projeto de Código Penal, Raimundo Teixeira Mendes, o mais
credenciado discípulo brasileiro de Augusto Comte, explica que, "ao lado
da massa geral dos cidadãos normais, existe pequena fração de naturezas desgraçadas
que, em graus diversos, são inaptos para a vida
social, ou por excesso de egoísmo ou por deficiência de altruísmo.
A influência da educação sistemática (instrução) é secundária para os
modificar. Porque se essa influência tivesse o caráter capital que lhe querem
atribuir, todos os indivíduos dela privados seriam maus. A experiência, porém,
demonstra o contrário. As naturezas ruins brotam apesar dos cuidados da
sociedade, já para impedir seu advento, já para corrigi-Ias. Só a cega
fatalidade poderia ser recriminada por semelhantes aberrações. Esses
indivíduos, entregues a si próprios, são levados a atentarem contra as
condições mais elementares da existência coletiva. É para com eles que o
governo tem de tornar-se repressivo, indo até
à sua eliminação, quando atos decisivos tornam patente a sua
radical insociabilidade".
"É assim, acrescenta Teixeira Mendes, que
surge a legislação criminal que tem por objeto garantir a disciplina humana,
impedindo que pequeno número de díscolos viole os requisitos mais grosseiros da
ordem e do progresso."
Em outro
trecho, baseado no princípio do interesse social, declara Teixeira Mendes que a
embriaguez deve ser considerada como agravante, porque nesse estado o homem
está exposto a cometer crimes, cumprindo-lhe, portanto, evitar essa
predisposição, cuja responsabilidade penal lhe caberá. A perspectiva da
severidade das penas, o medo em uma palavra, é um dos fatores inibitórios mais
poderosos para conter as naturezas mal formadas.
A propósito da pena de
morte, defende Teixeira Mendes o ponto de vista de Augusto Comte, que era
contrário à sua supressão, não só pelo seu valor preventivo, como também por
corresponder a uma necessidade de defesa social contra as naturezas
radicalmente más. O poder inibitório das penas e, em especial, da pena
capital, é fundado na grande energia do instinto de conservação individual. Na
generalidade dos casos é esse instinto assaz forte para induzir os indivíduos a
atitudes mais prudentes. O terror da morte consegue muitas vezes o que o medo
de outros castigos não alcançaria.
"É
lamentável, acrescenta Teixeira Mendes, que a imperfeição da ordem natural
imponha à Humanidade práticas tão dolorosas que, no entanto, irão se tornando
cada vez mais excepcionais, poupando às naturezas boas as aflições e os choques
emocionais que tais eventos ocasionam."
Para exemplificar
o modo pelo qual o problema da responsabilidade penal é encarado entre os
adeptos da Religião da Humanidade, citarei, por último, Luiz Lagarrigue,
provecto discípulo chileno de A. Comte e autor de um trabalho publicado em
1921, sob o titulo de Naciones Positivas de Justicia Criminal.
"É o
império da vontade altruísta sobre a vontade egoísta, diz ele, o que determina
o cumprimento espontâneo dos deveres e o triunfo do bem e da virtude. A
sociedade dispensa sua confiança e concede liberdade aos individuos, na
proporção do grau de altruísmo e dos bons hábitos que supõe existir neles.
Essa confiança e essa liberdade são a base da responsabilidade social que Ihes
cabe. Perdida a confiança, a sociedade coarta a liberdade do indivíduo, o que
equivale a declará-Io irresponsável."
"Aos
que não merecem a confiança social, como as crianças, os loucos e os
criminosos, a sociedade põe sob a tuteIa dos pais, dos enfermeiros ou dos
carcereiros, que se tornam, desde então, os responsáveis pela conduta de seus
pupilos."
"A
responsabilidade é, pois, uma instituição social diretemente relacionada com a
confiança e a liberdade que a sociedade outorga aos indivíduos. Tal
responsabilidade não leva em conta os móveis determinantes da conduta
individual, porquanto, sob o ponto de vista social, não se trata de apreciar
as circunstâncias existentes, atenuantes ou agravantes do delito, para medir a
pena, mas sim de obrigar ao cumprimento daqueles deveres que são condição,
inclusive, da existência social."
"Quando
se pretende inspirar com o castigo, apenas temor, comenta Lagarrigue, ele se
torna selvagem e corruptor. Se o homem despreza a condenação, suporta o castigo
como um martírio."
"É
evidente que o temor do castigo não tem nenhuma influência nas almas em que
ainda não germinou a intenção delituosa. Mas a ação moral da pena se faz
sentir quando há o propósito malévolo e está o indivíduo sob a tentação e a ponto
de cometer o crime. Então o temor pode reprimir o delito. A finalidade social
do castigo, surgida depois de longa evolução histórica, concebe a pena como uma
condição determinante da conduta."
"A
propósito da pena capital, escreve ainda Lagarrigue, devemos, por fim,
considerar os casos desgraçados de delinqüentes ferozes, cuja correção é
impossível. Sua reclusão perpétua poderia constituir um martírio inaceitável
para uma sociedade civilizada. Cabe, nesses casos extremos, eliminar essas
vítimas dos instintos egoístas, sem dar, porém, à sua morte o caráter de pena
ou castigo. Sob a noção positiva dos interesses da Humanidade, as existências
daninhas, sejam humanas, animais ou vegetais, devem ser eliminadas."
***
Pessoalmente,
diz L.. H. B. Horta Barboza sinto-me
demasiadamente pequeno para dar um balanço em tão vasto e complexo campo dos
conhecimentos e das instituições sociais.
De
conformidade, porém, com o meu entendimento, longamente formado dentro do
positivismo e alimentado pela Religião da Humanidade, creio poder sumariar as
concepções que, a esse respeito, integram o meu quadro cerebral, mediante os
seguintes parágrafos finais.
Excluindo-se
as crianças, cujo desenvolvimento psicossomático ainda não se completou, serão
considerados como socialmente anormais os indivíduos que, permanentemente ou
não, se revelam incapazes de adaptarem sua conduta às exigências mais
grosseiras da vida social. Essa incapacidade, de corrente da constituição
orgânica, quer congênita, quer adquirida, manifestar-se-á, nos casos dos
idiotas, loucos ou dementes, por inépcia, confusão ou superexcitação intelectual,
e, nos casos dos delinqüentes, pela excessiva preponderância dos instintos
egoístas, não obstante manter-se plena a lucidez mental, tendo o próprio
criminoso consciência de que os seus atos são reprováveis e nocivos.
Os idiotas,
loucos e dementes não são classificados pela sociedade como imputáveis,
conquanto se veja ela na contingência de adotar, em relação a esses infelizes,
provídências de defesa para anular-Ihes a possível periculosidade, ao mesmo
tempo que procura adquirir recursos mais eficientes para curá-Ios e
recuperá-Ios.
Os
delinqüentes propriamente ditos seriam apenas aqueles que, dotados de
inteligência normal, são no entanto escravos de seus instintos pessoais ou
egoísticos, anormalmente enérgicos e em função dos quais meditam e agem.
Conquanto
não seja lícito atribuir-se-Ihes responsabilidade moral, no velho sentido
teológico-metafísico, cabe-Ihes, perante a coletividade, aquela
responsabilidade sociológica que a experiência multissecular da espécie humana
e o bom-senso da opinião pública, em todos os tempos e em todos os lugares,
nunca deixou de reconhecer, através infinitos matizes e variações ao longo da
história.
É que a
sociedade considera, de um modo geral, como responsáveis os indivíduos,
delinqüentes ou não, dotados de capacidade intelectual para avaliar os seus
atos, comparando-os com outros também possíveis.
A escolha
entre muitos atos igualmente exeqüíveis é feita, porém, não só na base da
razão, mas também na dos interesses e desejos dominantes. Se os desejos são
egoístas, violentos e incontroláveis pelos conselhos da razão, não cabe responsabilidade
moral, mas é a esse fenômeno psíquico que se denomina responsabilidade social.
Essa forma e esse critério da responsabilidade é classificada como social
porque não pode ocorrer no homem isoladamente, desligado da sociedade. A razão
do delinqüente apresenta-se suficientemente formada pela sociedade e sabe
distinguir os atos bons dos maus. Os seus instintos egoísticos é que permanecem
demasiadamente intensos, impedindo a escolha das atitudes boas, que a consciência
inexorável aponta.
Pode não
haver culpa. Mas subsiste a responsabilidade perante a sociedade, que agirá
sobre o delinqüente procurando frear o seu egoísmo, mediante várias formas de
intimidação e que, inclusive, o imputará sempre que o ato criminoso venha a ser
cometido.
A ação penal
da sociedade é, portanto, ao mesmo tempo, um indispensável processo de defesa
coletiva e um eficiente auxílio ao indivíduo em seus eventuaís esforços para
reprimir os próprios impulsos anti-sociais.
*
* *
Tudo que
acabamos de expor terá sido, quando muito, pálida súmula dos atuais resultados
das análises e pesquisas positivas a respeito do complexo e importante
problema psicossocial da responsabilidade penal.
Os nossos conhecimentos
científicos ainda não esgotaram esse dificílimo fenômeno, nem o penetraram de
modo a nos permitir uma conceituação precisa de seus elementos característicos.
As ciências correspondentes estão no ápice da escala enciclopédica. Por isso
mesmo só mui recentemente foram abordadas pelo espírito positivo (Inteligência
Científica), que ainda não pôde devassá-Ias e domina-las completamente. Não é
de estranhar, pois, que muito haja ainda que respigar, que corrigir e que
completar.
Nas ciências do homem, mais
ainda do que nas ciências do cosmo, devemos, como; aconselhava Augusto Comte,
renunciar à quimera da verdade imutável, não encarando a verdade de hoje como
definitiva, nem a de ontem como absolutamente falsa.
A Sociologia
e a Moral, assim como todas as demais ciências, dizia ainda o filósofo, devem
ser concebidas como nascentes e, portanto, como suscetíveis, quase
indefinidamente de largos e variados progressos.
Quaisquer
porém, que sejam as luzes que o futuro projete sobre o angustiante problema da
criminalidade, acredito que subsistirá, incólume, o princípio de que a ação
penal deve ser exercida com a intenção exclusiva e o propósito único de preservar
a ordem e o progresso da Humanidade.
Para
conhecerem algo sobre as Ciências Sociologia e Moral Positivas